Paranoid Park (idem), de Gus Van Sant (EUA, 2007)
por Cléber Eduardo

Novos desafios

Gus Van Sant parecia ter chegado a uma região limítrofe de registro das experiências e das ações em si mesmas. Certamente em Gerry, ainda mais em Last Days. No primeiro, dois corpos em deslocamento no espaço, quase nada mais. No segundo, diante de uma imagem baseada em uma esfinge pop (o nirvana Kurt Cobain), Van Sant, em vez de transformar em conceito a inviabilidade da decodificação de seu protagonista (como faz Todd Haynes em I’m Not There), simplesmente nos coloca em contato com o personagem. Vemos em detalhes, sem pressa e sem síntese, os gestos do rapaz. Nada mais que simplesmente isso. Essa opção está em completa sintonia com as reflexões e pregações de André Bazin, que, em manifestações contemporâneas às de Cesare Zavattini (cabeça teórica do neorealismo nos anos 40), esperava do cinema a retenção da vida. De preferência, com mínimo de intriga.

Para onde iria Van Sant depois desses limites? A resposta é Paranoid Park, filme apenas parcialmente conectado ao anterior, assim como a Elefante, mas também rompido com os dois. No lugar de um compromisso com a captação da experiência, Van Sant opta por uma estilização da imagem e do som, mudando a textura de algumas sequências e colocando alguns movimentos em câmera lenta ou em aceleração, quando não chega a abstração das formas. Se continua a filmar corpos caminhando, com  a câmera diante do personagem ou nas costas dele, sua atitude aqui é mais próxima de experimentalismos e vanguardas, sem assumir compromisso com nada disso.

Mas a principal mudança está no olhar para os personagens. Se antes mantinha um registro concentrado somente na superfície dos corpos e nos sinais da existência, mostrando-nos uma relação direta entre as imagens e as coisas filmadas, em Paranoid Park o olhar é híbrido. Entre a imagem e as coisas, talvez haja uma camada intermediária. Alguns closes no protagonista e uma tentativa de expressá-lo, sobretudo por meio da estilização e do desenho de som, empregados para criar um registro para a percepção dele nos momentos mostrados, nos levam a ver uma “imagem em busca”. Haveria algo mais a ser captado para além do visível? Mas já não havia em Elefante? Não se buscava algo na imagem para além do visível, embora o diretor só nos desse o visível para sentir as coisas?

Pode-se achar que é por ai mesmo, uma aproximação com algo de misterioso e não compreensível, de um sagrado cultivado pelo uso da música ritualística em um momento chave. Mas mesmo quando a câmera se detém em um rosto, aparentemente interessada em desmascará-lo e enxergar algo mais nele, como queria Bela Balázs, está apenas a mostrar esse rosto e não a encará-lo como um campo de enigmas. Continuamos nas superfícies, mas ela está contaminada pela subjetividade do protagonista, por essa busca para além, substituindo Bazin como matriz, parcialmente pelo menos, para transitar por outras frentes, como a de Bela Balázs e o desnudamento pelo close, que conseguiria enxergar através da expressão facial, não somente ela.

O universo humano é familiar a Van Sant, cineasta cujos principais personagens não são adaptados ao senso comum da sociedade americana, de dependentes de drogas a um prostituto epiléptico, de uma moça de dedo enorme a um psicopata instalado em hotel de estrada, de alunos de um colégio transformado em palco de chacina a um pop star balbuciante e com atitude de zumbi. A vida não é fácil para esses seres de ficção, ao menos nos momentos a nós mostrados. Quase todos são muito jovens e estão atormentados por algo. Em Paranoid Park, o ambiente é de segundo tempo da juventude. Nele, o protagonista, Alex, é um blasé. Está sempre com a cabeça em outro lugar, meio dopado, com um nó a desatar em sua consciência. É inevitável a relação com Crime e Castigo, de Dostovieski, mas sem conceito ou filosofia, sem um texto a intermediar a relação entre ação e moral,. O texto aqui é para se livrar da culpa e não para motivar o gesto violento. O gesto é quase um acidente.         

Quando vemos no começo o diário escrito por Alex, com a narração em primeira pessoa, vemos o início de uma confissão para si mesmo, mas em forma escrita. Expressar-se purifica. Alex até tira de letra a separação dos pais – mais complexa é sua reação aos próprios horizontes de sua vida, seu desejo de ver o que há fora de sua vidinha, sua necessidade de alguma aventura, mesmo a experimentando com cara de tédio. É o tal quase acidente, durante um passeio clandestino em um trem de cargas, encerrado com a morte de um segurança, que opera toda a narrativa de Paranoid Park. Não parece ser casual a ironia de que o acontecimento ocorra no dia da cidadania. É a responsabilidade da qual tenta fugir o motivo do desconforto de Alex.

Van Sant reproduz o procedimento de não dar rosto para os adultos da família de Alex, como fizera com os pais dos assassinos em Elefante. O tio tem a cabeça cortada pelo enquadramento em sua primeira aparição, depois encaminha-se para uma região de sombras no ambiente. A mãe aparece no fundo do plano, ao pé de uma escada coberta de plástico, depois reaparece de costas para a câmera. O pai entra em cena fora de foco, apenas com a voz, em um momento mais adiante, mas, em procedimento que quebra o padrão, entra em foco quando o filho se levanta. Eles falam do peso e do sofrimento inerente a algumas situações. Pai e filho, naquele instante, são quase um. O adulto deixa de ser pai para ser um companheiro de mal estar. Merece a imagem porque deixa de ser um símbolo para se tornar um ser.

Em um outro momento, em sentido inverso a esse, vemos Alex e um detetive chinês em uma mesa, um de frente para o outro. É um interrogatório. Suavemente, a câmera muda o enquadramento, tira o detetive do plano sem cortar, aproxima-se do rosto do Alex, único interesse de Van Sant, e termina de frente para sua expressão. Não importa a investigação, somente o que se passa com Alex. Mesma operação vemos no sexo com a namorada. A câmera fica nos olhos deles, eventualmente encoberto pelos cabelos dela, para vermos a distância, ali, do protagonista em relação à ação. Alex está sempre saindo pela tangente, sempre encaminhando-se para uma zona de escape, sempre disposto a não estar onde está. Qualquer coisa mais fechada a se dizer sobre ele, e o filme, é desperdício de sensibilidade – pois o cinema de Van Sant, a cada filme, nos coloca um desafio.

Setembro de 2007

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