Beijo
Na Boca, Não (Pas sur la bouche), de Alain Resnais (França/Suíça, 2003) por
Fábio Andrade Resnais
sempre o mesmo: novo
Logo ao fim do primeiro número
musical de Beijo Na Boca, Não, Faradel (Daniel Prévost) olha para o espectador
e diz ter inventado a liquidação mencionada na canção só para se livrar das coristas
que o acompanhavam na cantoria. A confissão, feita diretamente ao espectador,
gera um primeiro estranhamento: salvo engano, é a primeiríssima vez nos 70 anos
de carreira de Alain Resnais em que a diegese é quebrada. Pois embora Resnais
seja muito facilmente associável (com justeza, mas também um tanto de redução)
aos jogos de estrutura narrativos – sentimento de filmes tão distintos quanto
O Ano Passado em Marienbad e o díptico Smoking/No Smoking – seu
interesse sempre foi construir um universo diegético fechado, sem ranhuras ou
fragilidades, em que a questão estrutural se revertesse, sempre, para a própria
solidez diegética. Até mesmo em Mélo, filme que inaugura a fase teatral
que dura até hoje, a sobreposição de meios funciona sempre de maneira complementar,
nunca se tornando assunto. Lembremos do plano de Mélo em que a quarta parede
é exposta, para quebrar a expectativa da configuração teatral onde a quarta parede
seriam as poltronas dos espectadores. Aqui temos um jogo
de máscaras parecido, mas dessa vez o interesse pelo teatro – ainda central –
está não só na natureza da representação, mas sim na natureza do texto. Pois Beijo
Na Boca, Não traz a opereta que André Barde e Maurice Yvain escreveram em
1931 diretamente para 2003, sem atualização de questões ou adaptações de texto
significativas. O filme é, portanto, o ruído produzido pela fricção dessas duas
épocas, esses dois olhares, esses dois meios. Beijo Na Boca, Não estabelece
uma relação extraordinariamente direta com o público, mas de uma considerável
dificuldade crítica. Pois, por mais que se pense em inúmeras chaves possíveis
de aproximação com o filme, cada uma delas parece já solidificada em algum momento
anterior da carreira de Resnais. O
contraste do cinema com o teatro já era central em Mélo; a leveza musical
dava o tom em A Vida É Um Romance e Amores Parisienses; a representação
como questão e os limites da cena nos levam a Smoking/No Smoking (lembrado,
também, pelo timing cirúrgico dos atores); a luz como matéria moldável
remete a Amor à Morte - filme em que a abordagem na adaptação (no caso,
de uma partitura musical) também era determinante para o resultado; o humor
a partir das diferenças culturais entre a França e os EUA era o mote de I Want
To Go Home. Esquartejado assim em palavras, Beijo Na Boca, Não pode
parecer produto de um diretor já acomodado em seu próprio universo, em uma espécie
de auto-homenagem que não faz mais que repisar questões que ele próprio já esgotara.
É preciso lembrar, porém, que mesmo nas tentativas menos bem sucedidas (caso de
A Vida É Um Romance e Amores Parisienses – e, definitivamente, não
o caso deste filme), Alain Resnais nunca pecou por falta de ousadia. A cada filme
ele traz um elemento novo à encenação, que podem ir do cartoon em I
Want To Home, aos ensaios científicos em Meu Tio da América (que, aqui,
são alvo de saudável zombaria). Existe, sim, um fator que
é único a Beijo Na Boca, Não, que é, de fato, a conversa com a câmera.
Mas o surpreendente é que a leveza que flutua sobre as piscadelas metalinguísticas
de Beijo Na Boca, Não revela uma armação um tanto mais complexa. Pois,
ao quebrar a diegese, Resnais produz um paradoxo: ao mesmo tempo em que incorpora
esse extracampo à representação, essa incorporação só a torna mais sólida. Quanto
mais aquela cena é exposta enquanto tal, mais somos envolvidos por sua teia de
dramaturgia. O desafio crítico está, muito, aí: como Resnais consegue desmontar
um universo diegético e, ao mesmo tempo, torná-lo ainda mais sólido? Muito disso
pode ser atribuido aos desempenhos excepcionais dos atores (Sabine Azéma e Pierre
Arditi, sim, mas também Jalil Lespert, Isabelle Nanty e Darry Cowl), e mesmo ao
fio do texto de Barde e das canções de Yvain – fatores que são determinantes,
e que norteiam muitos dos prazeres desse encontro. Mas, para Resnais, a questão
central é sempre a mise-en-scène, e ela que nos oferece a resposta mais
contundente para essa inquietação. Se
em Smoking/No Smoking Resnais se interessava justamente pelas entradas
e saídas de cena do teatro, são elas que marcam os limites do cinema em Beijo
Na Boca, Não. Isso fica claro tanto no fade para o próprio plano que
marca as saídas de cena de Faradel (sempre ao som de uma revoada de pássaros),
quanto na possibilidade de Gilberte (Azéma) desmaiar na cozinha e já cair deitada
em outro cômodo. Ou mesmo na angulação de câmera que coloca um par de chifres
sobre a cabeça de Arditi. Esses saltos discretos são essenciais, pois é ali que
se produz a representação. O que faz desse encontro entre cinema e teatro tão
particular nas mãos de Resnais é, justamente, ele se construir no limite entre
os dois – espaço em que ele não é mais nem um, nem outro, mas sim uma coisa nova.
Espaço esse que o lançamento, mesmo atrasado, de Beijo Na Boca, Não vem
reforçar como um dos mais agradáveis e estimulantes de se estar. Abril
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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