in loco - II festival de paulínia
Dia 7: Mecanismos demonstrativos
por Francis Vogner dos Reis

O que é um mecanismo demonstrativo? É uma estratégia que implica em uma estrutura que explica as coisas enquanto elas são mostradas, que deixa claro que no filme tudo é uma rede de causas e efeitos infinita, em que um fato justifica o seguinte ou está em sincronia com algum outro. Ilhas das Flores é o exemplo máximo desse mecanismo que é coisa elementar também nos longas de Jorge Furtado, se não como estrutura e corpo, mas sim como lógica narrativa e princípio organizador de seus universos. No caso de Antes que o Mundo Acabe, de Ana Luiza Azevedo, esse mecanismo como princípio organizador é evidente, e isso se explica bem já que a cineasta também é da Casa de Cinema de Porto Alegre, e o filme tem Furtado como um dos roteiristas. Baseado em livro de Marcelo Carneiro da Cunha, o filme se utiliza da idéia-base de teia desde sua abertura/introdução: coisas distantes se ligam, tudo passa por diferenciação ou analogia, tudo é sincrônico, se auto-explica e se repete como modo de relativizar as coisas e identificar experiências distantes ou contrastantes.

Se um dia o expediente já teve alguma originalidade, ao propor o caos e dominá-lo, o seu uso hoje não deixa de ser uma fórmula que domestica a desordem das coisas que lança ao ar. No caso, temos aqui uma garotinha que narra a história em que seu irmão é protagonista. Essa história envolve as vicissitudes causadas pelo triângulo amoroso entre o protagonista, sua namorada e o amigo, além da troca de cartas com o pai que mora em uma selva asiática. A complexidade das coisas é uma complexidade de roteiro (na verdade de acúmulo de ações e reações), ou na verdade, uma complexidade sugerida pelo roteiro. Existe uma série de situações que supostamente dão a dimensão à radicalidade das experiências vividas pelo garoto Daniel como a paixão, a traição, a mentira e a necessidade de se identificar com o distante pai biológico, personagem bem diferente dos prosaicos personagens da cidadezinha em que mora.

Só que, no nível dramático, se o filme sugere uma complexidade e um certo frescor da experiência, o resultado é artificial, porque se limita a demonstrar essas experiências como uma sucessão de situações que, se resultam esquemáticas, é menos porque obedecem a um padrão (há um modelo, não exatamente um padrão) e mais porque acusam muito drasticamente a importância do roteiro. Se em uma dimensão prática o roteiro é fundamental, quando ele se torna coração e, me desculpe a diretora, corpo do filme, este morre por asfixia. Temos um roteiro encenado, um mecanismo demonstrativo das situações. Não por acaso, o melhor momento do filme é quando Daniel tenta escrever um email para o pai: o plano é frontal e as letras aparecem invertidas na tela. Tudo que Daniel tenta escrever ele apaga em seguida. É um dos únicos momentos de Antes que o Mundo Acabe em que a ação não prima pelo dinamismo narrativo, pela eficiência do roteiro. É uma fissura. O mecanismo que asfixia o filme dá uma trégua. O cinema, por um instante, aparece.

Já o mecanismo demonstrativo em Herbert de Perto é de outra ordem: como documentário biográfico, acredita na sucessão de fatos como verdade primordial: a relação de detalhes como coisa que justifica e dá sentido à trajetória. É um documentário que não mostras as coisas, que não dá a ver. Ele demonstra. Demonstra como o Herbert Viana é hoje, como ele era antes, como as coisas aconteceram, como se desdobraram e em alguns momentos, como se resolveram. É, no mau sentido, um documentário profissional. Montagem ágil (não exatamente boa), pois ela acredita em dinamismo e rapidez (na funcionalidade), não em ritmo (que dá forma, sentido, e no limite, musicalidade). É também a trajetória do herói com queda e redenção.

Apesar dessa aparente frieza profissional, não é possível dizer que Herbert de Perto não tenha escolhas que visam um conceito muito claro e que venham confirmar seu mecanismo demonstrativo. Se, em uma primeira olhada, o filme parece nos dar mais informações visuais do que imagens reveladoras, há pelo menos uma escolha que é importante e nos lembra que Roberto Berliner dirigiu A Pessoa é Para o que Nasce e Pindorama. Na sequência em que Herbert faz a barba, sai do banheiro e se desloca pelo quarto e pelo closet, vemos uma câmera que, pela primeira vez no documentário, sublinha sua escolha. Colada a Herbert o tempo todo, esta só o acompanha até o momento em que ele começa a ter algum esforço extra pra se deslocar pelos cômodos. Nesse ponto, fica parada, a fim de sentir a dificuldade do personagem.

Em um filme sem muita preocupação em fazer escolhas de plano e montagem que queiram dizer algo, a câmera (como em muitas cenas dos filmes anteriores de Berliner) é companhia cínica, que faz questão de se posicionar perante seu personagem de modo que fique em evidência distanciada a deficiência desse mesmo personagem. O problema não é mostrar a deficiência em si, mas transformar esse momento num feito estético na busca de “distanciamento” que possa dar conta da realidade tal como ela é (pelo menos a realidade de Herbert). Se tomarmos o conjunto do filme – todas as escolhas e o próprio discurso do documentário – esse é o momento em que Herbert é traído pelo cineasta. A câmera o transforma em um deficiente. Se em certo aspecto Herbert é sim um paraplégico, em outro, usar isso para criar um momento “artístico” é concentrar nesse fato (a deficiência adquirida pelo personagem) sentido derradeiro do personagem. E isso não convém, ainda mais para um documentário que se chama Herbert de Perto.

Julho de 2009

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