in loco - IV festival de paulínia
Dia 2: O
"eu", ainda
por Raul Arthuso
Há pouco mais de um mês, a Cinética organizou
uma
mostra sobre o cinema brasileiro dos anos 2000 e um dos temas
destacados foi o da expressão da subjetividade nos filmes do período.
A mostra discutia como a figura do “eu” estava, em certa medida,
hiperpresente num conjunto de filmes desses anos. Claro que, pouco
tempo após a virada da década, ainda não se pode diagnosticar
uma continuidade ou não dessa característica de parte da produção.
Mas o fato é que, de alguma maneira, o “eu” esteve em destaque
nos dois longas-metragens exibidos neste sábado em Paulínia.
Uma Longa Viagem,
de Lucia Murat
A
rigor, Uma Longa Viagem trata de três jornadas. A primeira
e mais evidente é a que a diretora Lucia Murat empreende em sua
memória, voltando aos anos 60 e 70 para refazer o percurso de
sua relação com seus dois irmãos. A segunda, mais literal, é a
jornada pelo mundo de um deles, Heitor, um andarilho sem lugar,
enquanto experimenta todo tipo de drogas. Esta segunda viagem
é um contraponto à primeira, já que enquanto a trajetória de Lúcia
é um retrato dos jovens que se envolveram nos movimentos políticos
durante a ditadura militar, a viagem de Heitor é outra, diante
de um mundo que não se aceita: o escape. Este discurso, que tem
na cultura hippie seu paradigma, tem sido algo marginal dentro
da historiografia brasileira sobre a ditadura – enquanto o envolvimento
político domina o discurso, inclusive no cinema.
Mas há ainda uma terceira viagem, a de Murat por
uma série de temas que são muito próximos do universo de suas
ficções: a ditadura militar; a relação da elite com as classes
populares; os posicionamentos das pessoas diante do mundo e seu
reflexo político, além de um afeto que acaba interditado por essas
posturas. É dessa pessoalidade, pela conjunção das três viagens,
que sai o que de mais interessante tem o filme. A tentativa de
reordenar o afeto a partir do tempo leva ao impasse de tentar
estar onde nunca se esteve. Porém daí sai também um das fraquezas
do filme, pois a narradora parece não aceitar essa sua ausência.
Existe uma pulsão em
Uma Longa Viagem de preencher todos os
buracos, esmiuçar cada pequeno traçado de Heitor pelo mundo, como
se as elipses inerentes à memória e ao “não estar lá” tivessem
que ser eliminadas.
Assim,
se por um lado as entrevistas de Heitor são o que há de mais saboroso
no filme, as leituras das cartas de Heitor encenadas em estúdio
por Caio Blat são o que há de mais desinteressante. Isso não se
deve à incapacidade do ator, mas ao que a montagem entre o Heitor-real
e o Heitor-ficcional explicita: enquanto as entrevistas do irmão
da diretora criam uma figura carismática, de intensa identificação
com o espectador (com as marcas do tempo expostas e que literalmente
se recusa a enquadrar-se pelo plano – se movimentando, esquivando
rosto da câmera e com uma fala de ritmo e cadência pouco afeitas
ao cinema), as cenas com Caio Blat parecem um movimento de enquadrar
esse universo de ausência – como se o ator pudesse dar corpo presente
ao tempo/espaço que se foi.
É interessante notar como na maior parte dessas
cenas de estúdio o filme utiliza projeções dos lugares visitados
por Heitor como cenário. Em frente a elas, o ator tenta transpor
as sensações do personagem real transmitidas via carta. Essas
projeções parecem o que a palavra indica: um desejo da realizadora
de se colocar nessas cenas. Contudo, as entrevistas trazem à frente
uma pessoa de espírito inquieto e uma alegria de viver que as
encenações negam, com excesso de gravidade. Assim como nas ficções
de Lúcia Murat, em Uma Longa Viagem
esse peso parece algo inescapável.
O Palhaço,
de Selton Mello
Apesar
de O Palhaço partir de um clichê (o palhaço melancólico
que faz os outros rirem, mas não vê mais alegria na vida) e de
se utilizar de algumas metáforas batidas ou óbvias, como a maçã
na mão da mulher pecaminosa e o ventilador como objeto de desejo
para alguém que precisa mudar sua vida, o principal a se anotar
de saída é que o novo filme de Selton Mello é engraçado, o que
já vale bastante coisa quando se trata de uma comédia. O filme
é quase uma metralhadora giratória de piadas, em sua estrutura
episódica costurada pela trajetória de Benjamim (Selton Mello)
em busca de um sentido para sua vida, mas grande parte das cenas
isoladas são muito bem resolvidas, tanto pelo trabalho do elenco
(cheio de figuras com forte significado no imaginário do espectador
como Paulo José, Moacir Franco, Ferrugem, Danton Mello, Jackson
Antunes e Jorge Loredo), como por muitas das cenas serem realmente
bem escritas e atuadas numa linha fina entre o clown e
o exótico.
Mas antes que alguém diga que a matriz é o clown
felliniano, a influência parece muito mais próxima. O Circo Esperança
é herdeiro direto da Caravana Rolidei de Bye, Bye Brasil.
Porém, se no filme de Diegues a chave era uma revisão do “milagre
brasileiro” dos anos 70 e a mudança do país, Mello faz uma história
universal, mais interessada na transformação do protagonista que
nas contingências do país. Benjamim é um análogo de Ciço, personagem
de Fábio Júnior no filme de Diegues, enquanto que Lorde Cigano
(José Wilker em Bye, Bye Brasil) ecoa no personagem de
Paulo José – uma figura envelhecida, ainda que retratada com carinho,
mas que já não pode tocar o circo sozinho. A diferença entre os
dois filmes é sinal dos tempos: Diegues queria dar conta do Brasil
e suas transformações, tanto sócio-econômicas quanto de imaginário;
Mello olha para si em busca de autoconhecimento e afirmação.
É
nisso que o filme fraqueja: o eixo narrativo que se volta para
o conflito existencial de Benjamim é menos interessante que os
coadjuvantes do circo e as figuras exóticas encontradas pelo caminho
das andanças dos circenses. A previsibilidade dos rumos (como
a busca da mulher idealizada e a entrada em um emprego de rotina
para o qual não tem vocação), esvazia o interesse por esse personagem.
Não por acaso, quando Benjamim abandona o circo na meia hora final,
e todos os companheiros saem do filme, o filme se perde até o
retorno do filho pródigo ao circo. Mais uma vez é inevitável a
comparação com Bye, Bye Brasil: onde lá havia uma constatação
quase melancólica de que a Caravana Rolidei, como metáfora do
cinema, continuaria a existir apesar de tudo, em O Palhaço há a afirmação
da vocação. Ela se volta invariavelmente para o indivíduo. É uma
afirmação, em essência, do profissional.
Julho de 2011
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