in loco - IV festival de paulínia

Dia 6: Potências do mal-estar
por Raul Arthuso


Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra

A estréia em longa-metragem da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra é algo diferente no panorama do cinema brasileiro atual. Enquanto a tendência é colocar a afetividade no centro, em geral com certa doçura inocente ou uma afirmação positiva das relações, como se o afeto fosse capaz de salvar as pessoas da tragédia do mundo, Trabalhar Cansa é um filme político, no sentido mais puro que a palavra pode ter, algo que se desgastou como uma grife de cinema nos últimos 40 anos. É um filme de pessoas no mundo: pessoas em conflito, o homem como ser social, como um animal num mundo que lhe é hostil e cuja existência harmônica lhe parece estranha. O mal-estar na civilização.

As relações são mediadas de modo muito fino por uma mistura dos sentimentos e dos papéis sociais: a empregada que mora em casa, mas quer a carteira registrada; o marido que perde o emprego enquanto a esposa vira dona de estabelecimento comercial; a mãe que se acha patroa da empregada da filha por extensão; a funcionária que joga do lado tanto dos colegas quanto da patroa. Todas as personagens têm essa “dupla função”: jogam com seus sentimentos em relação ao outro, mas também com os interesses (às vezes, os mais baixos possíveis). Essa pulsão que move as relações só se faz possível, enquanto dramaturgia, pelo tom preciso do filme, que transita da observação seca à doçura, do drama existencial ao cômico, da comédia à tragédia, sem deixar marcada as fronteiras que separa um momento do outro. Sai daí uma fruição hawksiana, que se move pelos momentos sem deixá-los ser apenas isso, mas sim partes orgânicas de um todo pulsante.

O filme certamente será abordado pelo seu lado sobrenatural evidente, ainda mais que este aspecto perpassa a obra da dupla desde seu primeiro curta-metragem. Contudo, se antes esse elemento era uma metáfora de algum aspecto psicológico da personagem (e isso é trazido para a frente em As Sombras), aqui o terror é antes de tudo uma materialização do estado de mal-estar das personagens. Pois se o caminho era criar uma imagem “psicológica” nos curtas, agora as imagens têm uma relação física. Aliá-lo ao cinema de terror é reduzir sua potência e ignorar o que há de mais evidente em sua misè-en-scene: pessoas no espaço. Pois, Trabalhar Cansa é um filme físico. A obra se faz no nível do homem, tanto por negar uma metafísica no jogo das relações, quanto por se preocupar em filmar os atores – e é sintomático que seja um filme com tão poucos planos de passagem. É filme feito de carne e osso, louças, papel, tesoura, marreta, pano, correntes e vassouras. E isso é o que há de efetivamente fantástico nele.

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Ela Sonhou que Eu Morri, de Matias Mariani e Maíra Bühler

Matias Mariani e Maíra Bühler criam um cruel dispositivo para retratar suas personagens: sentados em uma cadeira com uma mesinha escolar de costas para uma lousa com a câmera frontalmente próxima a elas, as pessoas contam suas histórias de vida, seus sonhos, anseios. O dispositivo, porém, parece enquadrá-los também no sentido da gíria policial; acercá-los de que a realidade é outra. E é dessa tensão entre a memória e a realidade, os desejos e a dureza da vida criada a partir do dispositivo que Ela Sonhou que Eu Morri tira sua maior força.

O título já serve como uma espécie de carta de intenções ao opor o devaneio à crueza da morte numa frase que pela estranha associação torna-se impactante. Os personagens, estrangeiros presos no Brasil, são exógenos ao próprio quadro: sua vitalidade ao contar suas experiências contrasta com a rigidez dos planos. Aos poucos a reflexão sobre sua condição entra nos discursos e o tom do filme abaixa, ganha peso, gravidade, a tensão perde força e a metáfora da sala de aula – como se estas pessoas estivessem aprendendo a sofrer na escola da vida – se escancara. Somadas às cenas observacionais do cotidiano dos presos, é o que faz o filme se perder um pouco, não conseguindo renovar suas idéias, que saem do nível das oposições e entram no terreno da descrição da derrota – antes de, perto do fim, retomar um fio de esperança.

Julho de 2011

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