Personal Che, de Douglas Duarte e Adriana Mariño (EUA, 2007)
por Julio Bezerra

O Che pelo mundo

A maioria dos filmes sobre Che Guevara investe em uma exploração sobre a verdade por trás do mito do guerrilheiro argentino. Personal Che tenta o inverso. O gancho do documentário do brasileiro Douglas Duarte e da colombiana Adriana Mariño – que, aliás, se conheceram em um fórum de documentaristas na internet – é buscar o mito que se impõe sobre a verdade. Difícil encontrar um personagem mais propício a este movimento do que o revolucionário argentino, uma das lideranças da revolução cubana, executado em plena guerrilha na Bolívia, em 1967. Imortalizado pelas fotos de Alberto Korda e difundido por uma linguagem mitológica e espetacular, a figura de Che Guevara se abriu ao longo dos anos a uma enorme e confusa variedade de apropriações e parece cada vez mais longe dos fatos. Trata-se de uma figura demasiadamente contemporânea. Um mito da sociedade do espetáculo.

Quarenta anos após a sua morte, o mito do camarada Che sobrevive sob as mais variadas formas, da política à arte e à devoção religiosa. "Todo mundo pode interpretá-lo como quiser", afirma, logo no começo do documentário, o jornalista e biógrafo John Lee Anderson. "Ele simboliza o desejo de mudar o mundo", conclui, em um depoimento que sintetiza muito bem as intenções do filme. Duarte e Mariño percorrem o mundo para investigar as várias "releituras" sofridas pela figura do camarada Che. Em sete histórias que se entrelaçam, vemos Che virar santo milagreiro na Bolívia, um herói em Cuba, um ídolo para neonazistas alemães, o tema de uma ópera-rock no Líbano, a inspiração de um político rebelde em Hong Kong, um produto para alguns, terrorista para outros. 

Trata-se de um material disperso, reunido em filme na junção de diversas entrevistas, privilegiando o contato entre entrevistado e cineasta e alinhavando um discurso que obedece a uma coerência interna por vezes frouxa e digressiva. Personal Che segue previsível, mas nunca desinteressante. Se, de um lado, há muita redundância na maneira pela qual o filme se apresenta, enfatizando o predomínio do verbal no documentário em detrimento de outros elementos expressivos, de outro, o documentário compõe um painel rico, em que o camarada argentino é comparado a Cristo, ao Papa, a Hitler e a califas árabes.

O que o filme nunca se propõe é desmistificar a figura de Che. Não se trata de um documentário de confronto. Duarte e Mariño não assumem uma atitude provocativa. E se formos realmente rigorosos, Personal Che não levanta exatamente um debate. Os realizadores não se posicionam em relação a qual Guevara eles se afinam. Também nunca se utilizam do artifício da oposição dialética entre as falas, em que um impropério dito por um passa a ser negado pelo depoente seguinte. Os agrupamentos de depoimentos que se seguem estão longe de ser aleatórios, mas estão em uma maior sintonia com a lógica da "cabeça falante", da permissão que se dá a cada frase dita, a cada postura assumida, para existir numa zona de livre de associações. Assim, testemunhamos algumas falas absurdas ao longo do filme. "O melhor trabalho dele foi ser modelo daquela foto (de Alberto Korda)", opina, por exemplo, o fotógrafo italiano Oliviero Toscani, com um sorriso levemente irônico de Duarte ao fundo.

Na verdade, os realizadores questionam a fé de apenas dois personagens: um neonazista alemão e uma camponesa boliviana. O problema é que parece haver uma diferença na abordagem de cada um dos dois. O alemão, armado de argumentos e extremamente seguro de sua fé, recebe com naturalidade as perguntas e as responde cordialmente e cheio de razões. Não se configura um confronto. Com a camponesa é totalmente diferente. Em determinada cena, mesmo depois de acompanhá-la rezando para o Che, Duarte diz à camponesa boliviana que Guevara era ateu e acreditava que a religião era um atraso para a humanidade, o que a deixa inteiramente perturbada. Não há como fugir do fato de que o poder de quem filma é sempre maior do que o poder de quem é filmado, em especial quando se filma alguém que, na escala geral do poder, está abaixo de você. Em miúdos: há abuso de poder nessa cena.

Numa pequena digressão, lembro-me de uma história contada no Serras da Desordem: um sujeito da Funai lembra de quando acendeu um isqueiro na frente de um menino índio, para assombro e estupefação deste. A própria seqüência em que a camponesa leva uma oferenda para o Che e se esquece do fósforo aponta mais uma vez para este problema: as pessoas riem no cinema, algo provavelmente não intencionado pelos realizadores. Na verdade, eles parecem não levar a sério o fato de que aquelas pessoas vêem no Che Guevara uma figura a ser beatificada e acabam fazendo graça da ignorância deles.

O documentário é um campo marcado por muitas discussões de ordem ética. E quando se recorre à bibliografia sobre o tema, uma leitura um pouco mais atenta, em especial no momento “politicamente correto” em que vivemos, já deixa entrever a dificuldade de se definir de modo preciso as fronteiras entre ética, moral e até mesmo etiqueta. Deixemos claro, que o problema não é o que se pode e o que não se pode dizer ou fazer em um documentário. A reflexão ética, por seu conteúdo instável e complexo, não pode ser integralmente generalizada em mandamentos e varia de acordo com o tempo, com o filme, com o cineasta, e com a qualidade das relações que se estabelecem entre o cineasta e cada um de seus personagens.  Em atividades como o documentário, as exigências éticas ou a exigência de exercício ético não se medem única e exclusivamente pelo cumprimento de certos códigos estabelecidos. Mas o documentário é certamente um gênero que se define por suas obrigações para dentro. Como disse certa vez João Moreira Salles, “Não é o que se pode fazer com o mundo. É o que não se pode fazer com o personagem”.

Junho de 2008

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