Poesia (Shi), de Lee Chang-dong
(Coréia do Sul, 2010)
por Fábio Andrade
A
dor da criação
A primeira meia hora de Poesia deixa claro que
o filme retrabalhará várias das predileções,
e dos problemas, de Sol Secreto, trabalho anterior de
Lee Chang-dong. Se por um lado temos uma rara consciência
da necessidade de se encarar frontalmente o trauma e o luto sem
fugas graciosas, por outro temos as mesmas tintas carregadas na
encenação desses mesmos momentos, em uma dificuldade
notável de fazer o que é interno às personagens
aflorar à superfície dos atores. Mija (Yoon Jeong-hee)
está sofrendo de alzheimer e seu neto - que ela sustenta
e tem como única companhia - teria se envolvido no estupro
de uma colega de colégio, que se suicida poucos dias depois.
Sem o dinheiro necessário para pagar o acordo oferecido
à mãe da vítima pelos pais dos outros estupradores,
Mija entra em uma turma que estuda prática de poesia e
segue com sua vida, trabalhando como enfermeira para um senhor
debilitado por um derrame.
A desgraça, como se vê, não é pouca,
e o impulso paliativo ao belo que marca as aulas de poesia parece,
à primeira vista, promessa de um alívio tão
nobre quanto ineficiente diante do horror. Mas aos poucos Lee
Chang-dong vai revertendo essa lógica, colocando em crise
a posição da realização artística
diante do mundo. Pois Mija não consegue fazer poesia. Ela
segue as orientações do instrutor, contempla a natureza,
abandona uma reunião com os pais dos colegas de seu neto
para ir olhar as flores no jardim (em um plano que sintetiza perfeitamente,
com uma janela que liga e separa dois ambientes, toda a desconexão
da personagem)... e, ainda assim, nada. Não há experiência
estética, estado de criação ou desprendimento
que sobreviva diante das lembranças da mãe da garota
suicida andando pela rua aos prantos, sem sapatos, agarrada pelo
filho mais novo que tenta consolá-la. Para poder criar,
Mija precisará abraçar o horror.
Se
essa equivalência pode trazer um subtexto utilitário
um tanto problemático - uma vez que o luto e o sofrimento
seriam reduzidos a mero combustível artístico -
Lee Chang-dong leva essa relação um tanto mais longe.
Em um primeiro momento, surge a necessidade de experimentar o
horror. Mija vai à sala onde seu neto teria estuprado a
menina morta; vai à ponte de onde ela se jogou e contempla
o rio de seu ponto-de-vista; vai à sua casa, toca em seus
retratos, respira o ar que ela deixara ali, não respirado.
Não há poesia possível nesse mergulho funerário.
O que existe é a impregnação em um trauma
que não está ali, naquele gesto voluntário,
mas sim nos cacos de quem permanece e tem seu corpo e espírito
marcados pela duração, seja na boca entortada pelo
enfarte, ou na memória que começa a rarear.
Com
toda sua dificuldade de tom, Poesia ganha força
sempre que encara suas dificuldades de representação
de frente - e, nesse sentido, a cena em que Mija presta favores
sexuais a seu patrão é exemplar no que ela decide
mostrar, e também no que faz questão de esconder.
O incômodo (e aí não é o incômodo
sexual, mas sim de como a expressão do rosto do sujeito
permanece enigmaticamente retorcida - seria prazer ou a ausência
absoluta de prazer?) é parte indispensável
à existência: o Alzheimer faz a protagonista esquecer
as palavras, mas nunca a impede de se lembrar do que realmente
gostaria de esquecer. E não
é exatamente isso que o professor diz ser necessário
para se criar poesia? Para escrever, ele orienta, é preciso
aprender a ver as coisas pela primeira vez.
A providencialidade do esquecimento generalizado é contrastada
ao congelamento da memória encontrado na poesia. Pois tanto
a realização poética quanto o luto encontram
um terreno comum, que será confirmado na sequência
final. Mais do que um atalho, a poesia se torna o caminho que
leva direta e inevitavelmente ao sofrimento e, consequentemente
(ao menos gostamos de imaginar com o que fica para além
do filme), à sua purgação. É a dor
que torna operativo o que Mija dizia sentir desde sempre: um gosto
pelas flores e por dizer coisas estranhas. Escrever, portanto,
não é apagar o sofrimento. Ao contrário:
é apegar-se definitivamente à sua força,
com a disposição de deixar que ela te leve para
o fundo do rio.
Outubro de 2010
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