in loco - cobertura dos festivais

As Praias de Agnès (Les plages d'Agnès),
de Agnès Varda (França, 2008)
por Julio Bezerra

Sobre uma velhinha, falante e gorda

“Se você abrir uma pessoa, irá achar paisagens. Se me abrir, encontrará praias”. É assim que Agnès Varda apresenta seu mais novo (e, segundo ela, último) filme. Através das praias, ela atualiza seu passado, a infância em Bruxelas, a juventude no Mediterrâneo, para onde sua família se mudou durante a Segunda Guerra, o período como fotógrafa, o casamento com Jacques Demy, o feminismo, as viagens. Com entrevistas, fotografias, reportagens e trechos de suas obras, tudo empregado como uma espécie de álbum de família, Varda monta um ensaio sobre sua vida e obra. Uma tentativa exploratória e aberta de compreender retrospectivamente as formas em que sua vida e seu cinema evoluíram juntos, de maneira indissociável, organicamente.

"Praias não têm idade", diz Varda. Aqui, elas funcionam como máquinas do tempo. São também espaços privilegiados para o tipo de jogo criativo que interessa a Varda: da recriação de memórias de infância evocadas por fotografias de família, à construção de uma espécie de instalação ao ar livre composta por uma série de espelhos. As paisagens e retratos espontâneos capturados pelos espelhos expressam uma reflexão colocada no e pelo filme a respeito das limitações do cinema, que, para Varda, transborda um caráter inextricavelmente autobiográfico. Afinal, olhar para os outros é também colocar-se à vista. E ao se olhar no espelho, Varda vê Jean Vilar, Alain Resnais, Jean-Luc Godard, Jane Birkin, Jim Morrison, Chris Marker (materializado na forma de seu gato cartoon, uma espécie de marca do recluso cineasta), e, claro, acima de todos, Jacques Demy, o núcleo emocional do filme.

"Eu estou fazendo o papel de uma velhinha, falante e gorda", nos diz Varda (aos 81 anos) logo na primeira seqüência do filme. Simples, direta e bem humorada, a cineasta expressa seu engajamento, afetividade e humor. O filme se afirma em uma subjetividade assumida. É importante, neste sentido, ressaltar a narração em off feita por uma mulher. Pode parecer banal, mas é algo que até bem pouco tempo inexistia na tradição do cinema documental. Curioso como as escolhas de Varda são sempre evidentes. Ela não parece se preocupar com uma idéia de totalidade dos objetos, pessoas e espaços que retrata, fazendo escolhas por vezes arbitrárias, deixando de lado uma série de elementos representativos. Durante qualquer documentário, é natural que o cineasta se depare com um sem-número de situações paralelas que, apesar de interessantes, não se relacionam em nada com o assunto central do filme. Varda se deixar levar por elas.

A cineasta não está mais em um lugar a ser documentado ou meramente explorado com a câmera. O que se vê é tentativa de inventar formas de explorar lugares que se ligam à vezes por tênues linhas de conexão. Ou seja: Varda reivindica para si o filme. Sua câmera parece ter uma existência própria. Talvez, dessa impressão de uma subjetividade sempre presente, venha a sensação de que seus filmes têm um teor de autobiografia: não porque falam de narrativas de um suposto mundo real da cineasta, mas porque ela faz uso desse poder da observação, da manifestação do seu olhar. Mais do que isso. Podemos pensar nos espelhos estendidos na praia. Ali temos alguém que assiste as imagens, temos alguém que fabrica imagens, e alguém que atua nessas imagens. Ator, espectador e realizador em um mesmo dispositivo e pessoa – algo que já marcava Os Catadores e Eu, um filme irmão deste As Praias.

A subjetividade nesse filme está muito mais ligada a uma certa maneira de olhar o mundo em um determinado momento do que às histórias de vida do diretor. Este é o tipo de articulação que Varda estabelece entre a sua subjetividade e as coisas e pessoas que ela filma. Mesmo quando a cineasta protagoniza as atenções, é sempre em relação a algo que não é ela. Não é à toa que Varda constrói dispositivos de filmagem para se liberar de suas histórias pessoais. A idéia é sempre capturar o que surge deste encontro com o mundo. O que interessa a Varda, como ela não se cansa de repetir, são os outros. Em determina seqüência, Varda monta uma reunião de família puramente cinematográfica entre um ator há muito falecido (amigo da cineasta que participou das filmagens de seu primeiro longa, La pointe courte) e os filhos dele, ambos já em seus 50 anos. Varda monta um dispositivo curioso: um projetor colocado numa carroça; os filhos empurram a carroça, enquanto o projetor exibe imagens recentemente descobertas do pai deles, registradas pouco antes da morte prematura do intérprete, no período de filmagens de La pointe courte. Esta bela cena sublinha a intimidade incomum que os filmes Varda alimentam com seus personagens e situações, deixando claro ao mesmo tempo a visão de cinema da cineasta como um ato essencialmente generoso, um compromisso com o mundo que deseja sempre dar algo de volta para as pessoas e lugares que a inspiram.

Assim como em Catadores e Eu, em As Praias a dimensão ensaística do documentário de Varda surge como um exercício de pensamento, como lugar e meio de uma reflexão sobre o tempo, a imagem e o cinema. Este é um filme que carrega em suas imagens a marca indelével da contingência, da fragilidade do momento mesmo em que elas foram filmadas. E assim, Varda enseja cinematograficamente a idéia de que a memória não é algo arquivado, inerte. Suas memórias são ativas, sempre em movimento, prestes a serem atualizadas em um exercício brincalhão. A cineasta tampouco acessa suas lembranças, mas é por elas tomada: "Eu estou viva, e eu me lembro", diz a cineasta na última cena do filme. Varda abraça mais uma vez a natureza frágil, lacunar e misteriosa da imagem. As Praias é um filme voltado para o presente, menos a exploração da memória e do passado do que a narrativa de um aprendizado, um processo de criação que concede a um complexo e virtual objeto/tema uma imagem atual, particular e contingente. A maior alegria, porém, é o espírito lúdico com o qual Varda anima os que estão ao seu redor, incluindo nós, espectadores, e o seu próprio filme. Com um bom humor e uma curiosidade intransigentes, ela compartilha cada descoberta e pequenos momentos de prazer e tristeza. Difícil não ser seduzido.

Setembro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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