in loco - cobertura dos festivais

A Última Noite (A Prairie Home Companion),
de Robert Altman (EUA, 2006)
por Francis Vogner dos Reis

O efeito Altman

De um tempo pra cá Robert Altman deixou de ser um cineasta tão estimado como foi nos anos 90, época em que O Jogador e sobretudo Short Cuts fizeram a sensação. Em retrospecto, isso parece mais uma excitação fugaz daquela época, em razão de Altman ser um ícone veterano do cinema independente americano em um momento em que ser independente era uma grande virtude, quase um atestado de qualidade. De lá pra cá ele fez muitos filmes e se mostrou um artista de gênio irregular, capaz de belos trabalhos como Dr. T e As Mulheres e de bobagens absolutas como A Fortuna de Cookie, que é um arremedo de seu próprio estilo.

A Última Noite é seu novo filme e tem como epicentro dos acontecimentos um antigo programa de variedades de rádio chamado A Prairie Home Companion, que resiste em um momento (hoje) em que esse tipo programa não é mais comum. É a última noite do espetáculo que será extinto, e nesse cenário Altman estabele uma relação com seus personagens da maneira como lhe dá gosto: distribui toda sorte de tipos nos bastidores, cada um se revezando nas apresentações de palco, seja em solo ou dupla. Em paralelo temos Guy Noir (Kevin Kline), o segurança do espetáculo e um anjo da morte (Virginia Madsen).  

A Última Noite fica no meio do caminho, não chega a ser ótimo, mas longe de ser ruim. É um inventário dos “quase interesses” de Altman sobre questões cinematográficas, já que ele pontua diversas delas (noir, screwball comedy, musical, comédias de costumes) mas não se deixa levar por nenhuma. Isso poderia ser um elogio para alguns cineastas, mas não para Altman, justamente porque esse é o calcanhar de Aquiles de sua obra: Altman nunca consegue aderir totalmente a uma proposta cênica ou dramática, ele só suga o que quer de cada proposta de encenação (sejam gêneros cinematográficos ou autores, como Buñuel ou Fellini por exemplo) e nunca consegue objetivamente por em serviço do seu filme essas referências. Seu conceito é sempre confuso, porque parece indicar vários caminhos mas se contenta simplesmente em armar um “joguinho de cena”.

Peguemos por exemplo a parte que cabe ao personagem de Kevin Kline. Ele abre o filme, sentado em um bar na alta madrugada. Ele é também narrador dos acontecimentos. O que se estabelece é uma narração que propõe um flashback a partir de uma situação, um personagem e um ambiente ordinários. Tais como em alguns exemplares de film noir. Só que, rapidamente, esse registro é interrompido para mostrar os bastidores do programa, as conversas banais que supõem certa espontaneidade e improviso. Depois libera nos bastidores um anjo da morte, na forma de uma mulher loira vestida de branco que acompanha a “agonia final” do programa. Altman passa rápido por diversos motes dramáticos, não se prende em nenhum deles. Mais à frente ele se concentra no grupo, e personagens como Guy Noir e o anjo passam a ser mais periféricos.

O diretor usa o que lhe convém e em seguida descarta, atitude que, dependendo do conceito do projeto, cai muito bem. Mas não para Robert Altman. Sua relação com seu material é de quem tem mais interesse em imprimir sua marca (o que chamaremos de “efeito Altman”), do que realmente em se debruçar sobre um trabalho de construção dramática e estética que realmente tenha vigor. A relação com seus pontos de partida é mais utilitarista do que necessária, de um distanciamento que faz parecer que Altman não tem intenção nenhuma em entender suas escolhas e artifícios e muito menos intimidade com alguma coisa ali. Tudo existe para formar um quebra-cabeças que se pensa dinâmico e multidirecional, mas na verdade se revela como uma porção de registros mal ajambrados que só servem para gerar esse “efeito Altman”: forte no impacto e frouxo no conceito. Nesse sentido, mesmo um discípulo de Altman, às vezes tão enxovalhado, como Paul Thomas Anderson, tem um melhor domínio de seu universo e suas escolhas, faz um trabalho mais coeso mesmo que problemático.

No mais o filme tem lá a sua graça em situações mais isoladas e desconectadas da ambição central – que é fazer um requiém para o fim de uma era, representada pelo programa. Altman aqui tem um timing para encenar situações cômicas raro em sua obra, principalmente com Kevin Kline e a dupla de cowboys interpretada por Woody Harrelson e John C. Reilly. Momentos esses em que deixa sua tradicional empáfia de lado e quase atinge a vulgaridade que o humor aqui necessita. A vulgaridade deixa de ser depreciação como em Short Cuts e Prèt-a-Porter, para ser elemento vital da comédia almejada nessas cenas. Pena que no conjunto isso não pareça de forma satisfatória.

 


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