ensaios
Prazeres Desconhecidos
Love will tear us apart, Xiao
por Luiz Soares Júnior

“(…) And I will show you something different from either
Your shadow at morning striding behind you
Or your shadow at evening rising to meet you;
I will show you fear in a handful of dust.
There is shadow under this red rock”
“The waste land (The burial of the dead)”, T.S Eliot

“(...) E foi disto mesmo que trataram os Antigos, a saber, que a verdadeira ciência procede das causas aos efeitos; ao que eu saiba, jamais eles conceberam, como nós o fazemos aqui, que a alma (anima) agisse segundo leis precisas (certas), que ela fosse uma espécie de autômato espiritual”
“Tratado da reforma do entendimento”, Baruch Spinoza.

“1. A energia do universo é constante.
 2. A entropia do universo tende ao máximo”.
“Primeira e segunda leis da termodinâmica”, Rudolf Clausius

O círculo é a figura privilegiada a partir da qual a trajetória de desalento e extravio de Prazeres Desconhecidos recebe sua inflexão decisiva. Travellings cadenciados que padecem do mesmo estupor dos personagens, gestos insensatos, mas coordenados milimetricamente, que se repetem – a taquigrafia do autômato –, o leitmotif aural de uma canção assombrada que dá título ao filme, o leitmotif visual destas deambulações sem rumo e sem prumo pelo desfiladeiro das seqüências. A terra desolada contra o fundo da qual os personagens rondam é um canteiro de obras, e nós já o vimos no cinema: estas mesmas crateras, estes despenhadeiros, estes “buracos negros” no espaço e no tempo (os planos-seqüência catatônicos), onde o homem sofre o risco de um achatamento figurativo e dramático, habitaram a linha de frente (avant-garde) e de montagem do cinema soviético dos anos 20, de Dovjenko e Vertov, de Kuleshov e Kozintsev.  

Mas o construtivismo russo era inspirado por uma allure épica e um frisson lírico – um Sturm und drang presente tanto no Boris Godunov de Mussorgski quanto no pathos, entre rocambolesco e agônico, dos possuídos de Dostoiévski. Se um mundo novo estava sendo construído para a (e pela) câmera, era embalsamado pelo perfume capitoso de um festejo das aparências que tinha exuberantes antecedentes na cultura russa. Jia Zhang-ke nos narra o estado terminal desta história: o admirável mundo novo revela seu perfil distópico, seu ziguezague cataléptico e arritmia regulares. Se a Rússia leninista era o lugar onde o Ocidente era reinventado – arquitetônica, plástica e ideologicamente – por uma comunidade de homens e para uma comunidade (por-vir) de homens, a China de Prazeres Desconhecidos não reserva nenhum lugar para seus personagens habitarem (lugar fixo, estável, duradouro, a que posso chamar de meu; em suma, nenhum plano). O filme é estruturalmente ex-centrado: as composições desbalanceadas, a relação coalescente que a câmera estabelece com as situações e os personagens, "tão longe tão perto" – entre inquiridora e intimidada –, a alternância entre "entr'actes" performáticos (o hospital, a boate) e "entomologia descritiva"; ou estes planos sequência desvitalizados como grandes cânions temporais, cujo raccord de ligação só acharemos muito à frente, diferido (Qiao Qiao, a dançarina pela qual Xiao Ji está apaixonado, leva o pai doente ao hospital, e precisaremos esperar pela longa elipse lisérgica da boate para reencontrá-la órfã, no cimo de um desolado plano generalíssimo, véu soerguido sobre a cabeça, como uma Electra a quem o luto não cai bem). 

Nada encaixa ou ajusta-se em Prazeres Desconhecidos, nada se destina a um fim e reconstitui uma origem; o núcleo ou o istmo em torno do qual uma experiência pode se cristalizar está faltando; faltam igualmente os seus atributos característicos – continuidade, coesão, conexão. Tudo paira e flutua por um momento, antes de tombar – e glosa o “Tudo o que é sólido desmancha no ar” de Marx, mas em chave anêmica, pós-tudo. Os personagens não convivem em um mesmo mundo, eles esbarram uns nos outros, e sua única experiência intensiva é a do Nada. Se compartilham o mesmo sofá ou um beijo, é como estas crianças autistas de que Leo Kanner nos forneceu descrições fenomenológicas tão aterradoras: afásicos e hieráticos, “sofrendo de echolalia, ausência de reciprocidade e contato olho a olho, (...) repetição inapropriada de palavras sem significação, repetitivo e estereotipado comportamento como esfregar as mãos, preocupação exagerada com horários de trens ou outras efemérides pontuais, (...), insistência no Mesmo, com forte resistência a mudanças nos costumes ou rotina”. A forme ballade – que, para Deleuze, caracterizava um certo cinema moderno – intensificou-se de tal forma que acabou por implodir, e o filme agora é uma espécie de cápsula-esquizo, onde os estilhaços – de experiência, de significação, de repères existenciais e auráticos – flutuam, imantados por uma neo-gravidade: a da entropia.

Tudo se dá (se furta) como interstício, se experiencia como evasão, se mostra (se retrai) como sobra. Oblitera-se e subtrai-se, a fim de que apareçam apenas os efeitos enquanto efeitos - e aqui não estaríamos tão longe, embora em outro diapasão e sentido, do neo-trágico dos últimos Bressons, em que o efeito é apresentado antes da causa: o prato antes do golpe que o arremessara ao chão, o corpo antes do machado que o golpeara em L’Argent, a echarpe de Dominique Sanda tombando suavemente sobre a calçada, metonímia-efeito que “anuncia” retrospectivamente o seu suicídio em Une Femme Douce. Este efeito que antecede a causa, em Bresson, tem a função de designar um mundo caótico e irracional, muito além (muito aquém, em sua imanência cruel) do controle e da ação humanas; chegamos sempre tarde demais, longe demais, pouco demais.

Em Prazeres Desconhecidos, o mundo e sua sinfonia concertante de causas e princípios retraiu-se de tal forma que aos personagens resta apenas entoar o “Te Deum” de seu progressivo e inelutável desaparecimento da cena. Aconchegados no mesmo limbo, mas jamais coexistentes, jamais presentes “um para o Outro, nem Outro para o Mesmo”. Aqui, inexiste o ritual (pelo menos como entendido pela tradição), marco de mise en scène através do qual o cinema clássico sempre exprimiu a coesão de um grupo, a implicação recíproca de seus membros, sua indissolúvel unidade. Ficamos com o que sobrou da festa, ou esperando por ela. O que sobrou do ritual são estas performances privadas, através das quais o indivíduo atomizado tenta se reapropriar dos códigos e emblemas que ontem significavam alguma coisa, mas hoje já nada me dizem ou afetam, pois perdeu-se a “situação” a partir da qual estes códigos ou emblemas eram mediados, e assim poderiam me atingir.

A comemoração a que assistimos ao final da sequência na boate é ilustrativa deste descompasso entre o particular e o universal, que destina o particular ao autismo e o universal à  inanidade de uma representação abstrata e funcional a que “não posso chamar de nossa”: Jia acompanha o anúncio da Olimpíada com uma pan sobre a tela da TV (que rima com a atenção judiciosa que a câmera dedica ao anúncio televisivo da explosão um pouco antes, e com a cena final, que se inicia com a mesma pan para a esquerda sobre uma tela de televisão, agora na delegacia de polícia). A pan para a esquerda é repetida aqui sobre o espaço real da festa, e se fixa sobre duas crianças de costas para a câmera, que ensaiam pulinhos de êxtase diante dos fogos de artifício. Mas o entusiasmo daqueles jovens mais ou menos autômatos – cuja exuberância se esgota numa linha de montagem “marionetista” de corpos regulados pelo tohu bohu da música eletrônica – é desencadeado pela experiência virtual dos programas de televisão. É a TV (a pan para a esquerda) que oferece o modelo ou o arquétipo para a narração do real; é nela que se gesta a Gesta desta geração. Aliás, esta espécie de Mabuse fetichista e doméstico (a televisão) tem uma importância fundamental no panorama maníaco-depressivo que o filme descreve: Bin Bin e sua namorada “Tradição, Propriedade e Trabalho” masturbam sonhos de um futuro mais-que-perfeito diante de clipes e desenhos animados;  Qiao Qiao é garota propaganda de uma bebida alcoólica qualquer, e já adivinhamos o que pretende estrelar; e é vendo TV que Xiao Ji tem a inspiração para o roubo que arremata o filme, além de ser no seu quartinho de TV que se dá uma cena, implicando paternidade e capital, decisiva para conhecermos o personagem.

Os planos médios que abundam em Prazeres – tão longe, tão perto – recortam um meio e erigem um homem à altura da tela da TV; sua onipresença assinala o achatamento de um horizonte temporal onde, como escreve Daney, é o presente a única dimensão que conta, a única onde cabemos; exorcizados, portanto, o possível e seus avatares, a Utopia e seus acólitos: o pretérito imperfeito e o futuro do pretérito. “O cinema tinha sua forma de dizer ‘Atenção, agora vem o passado!’, no flash-back. A televisão, escrava do presente, se contenta com o instant replay! em fazer retornar do passado as imagens que ‘estiveram no presente’ e que- coitadas!- não são mais”, (Cine diário).

Mas se Jia assinala esta dependência espacial da representação do mundo à unidimensionalidade vertical da TV, há duas inflexões decisivas sobre a imagem que recuperam o seu “valor de uso” cinematográfico: a duração das seqüências – das sequências-plano, para descrevermos mais literalmente o marasmo histórico que Ren Xiao busca presentificar – e o personagem-câmera. A câmera é um Outro; coalescente, evanescente; ela pulsa, vaga, morde. É concertante e sibilina. Ela é o meio (de cultura, de contato) por intermédio do qual se elabora esta síntese entre o olhar mais entomológico de Pickpocket (Xiao Wu, 1997) e a pequena grande épica de Plataforma, onde a performance já anunciava um território-limbo, em que o gesto cotidiano e a Gesta do teatro mambembe revitalizavam o plano-sequência gregário da China provinciana com o slapstick da vinheta.

Em entrevista à Cinética, Jia escreve: “Não me interessa a contemplação como gesto final. Alguns dos sentidos da realidade não podem ser expressos pela mera observação do real. Em muitos momentos, a intervenção ‘surrealista’ é muito mais verdadeira para esta expressão do mundo”. Se nas obras ulteriores – O Mundo, Em Busca da Vida – esta intervenção se coloca de forma explicitamente gráfica, redimensionando mais ativa e diretamente a paisagem (humana e natural) mostrada, em seus primeiros filmes Jia reserva à performance este papel crítico de ressignificação imaginária de um espaço-tempo degradados. Em Prazeres Desconhecidos, o transe aberto pela repetição mecânica, taquigráfica do gesto indica uma mão dupla: índice de beco sem saída existencial (entropia e marasmo), mas também a fresta – a porta estreita do minuto pela qual o Messias benjaminiano se esgueira? – para a manifestação do autômato espiritual – uma experiência humana, demasiado humana na qual a radicalização da imanência (sua re-petição) acaba por liberar um horizonte Outro, de jogo ou de máscara, no qual se inervam as potências de um possível.

Agosto de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta