Projeções do presente
por Fábio Andrade

Por mais que o acesso a filmes pela internet tenha colocado eventos panorâmicos como o Festival do Rio e a Mostra de SP em outra perspectiva, eles são ainda uma chance rara de ver diversos filmes mantendo uma característica essencial: a projeção em tela grande. A dimensão da exibição em cinema é determinante em diversos sentidos, seja pela apreensão do tempo das cenas, a relação dos elementos no quadro, ou ainda por dados mais fluidos como a imersão visual e sonora em um espaço projetado para este fim - a sala de cinema como um museu -, as variações de luminância e toda sorte de interferência cognitiva que os bons diretores levam em conta - às vezes, ao extremo, como no Grindhouse de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. Com raras exceções, os filmes foram feitos para serem vistos na tela grande de um cinema.

Ao final da cobertura do Festival de Brasília deste ano, publicamos um adendo importante no que tange as exibições digitais. Concomitantemente, foi anunciada a migração mais agressiva do Festival do Rio para as projeções em vídeo, reduzindo o número de películas para apenas 80 - metade do ano anterior. Não dá para dizer que se tratou de uma surpresa. A dominação das projeções digitais tem sido constante em todo o circuito exibidor mundial, inclusive o dos festivais. Na mesma ocasião, o Festival também anunciou uma mudança nas projeções em vídeo, eliminando todos os formatos analógicos (sim, até ano passado era razoavelmente comum topar com um longa sendo exibido em DV Cam, por exemplo) e se concentrando no padrão DCP (apenas para as salas dotadas de projetores 2K ou 4K, eliminando, portanto, todo o circuito AUWE e Mobz, em geral equipado com projetores 1.3K) e em uma alternativa ao formato, criada especialmente para o Festival. Além disso, projetores de maior resolução seriam alugados para todas as salas do circuito, o que deveria garantir alguma regularidade nas exibições.

Não é preciso dizer que, a despeito de toda torcida e otimismo, o que se seguiu foi uma avalanche tão grande de acidentes de percurso que foi parar na capa do caderno de cultura de O Globo, e em seguida tomou a ponte aérea com matéria de Luiz Carlos Merten no O Estado de S. Paulo, já antecipando o problema aos frequentadores da Mostra de São Paulo - que também teve sessões acidentadas ou canceladas. Ainda assim, depois de anos de manifestação em repúdio à má qualidade das projeções digitais, talvez seja o momento de alguma detenção e consequência no diagnóstico. Aos interessados, recomendo a leitura de dois abrangentes artigos de David Bordwell em seu blog: Pandora's Digital Box: In the Multiplex e Pandora's Digital Box: At the festival, além dos links relacionados no final dos artigos. Segue um resumo de alguns dos pontos que parecem mais pertinentes ao nosso contexto, correndo o risco de simplificar o que não é simples.

Pensado prioritariamente como ferramenta de distribuição comercial, o DCP é um formato especialmente complexo para festivais que exibem um grande número de filmes e salas de cinema. Tecnicamente falando, o filme chega à sala em um HD - uma vez que as distribuidoras que criaram o padrão tenham definido que o envio por rede ou satélite, permitido por alguns formatos alternativos, seria pouco seguro, teoricamente mais suscetível à pirataria. Dentro dele, a pasta do DCP pode conter uma série de dados diferentes: uma ou mais faixas de vídeo e de áudio (facilitando a escolha do exibidor entre o áudio original e o dublado, se disponibilizado pelo produtor), legendas (sim, com o devido planejamento será possível evitar as legendas eletrônicas, por exemplo) e arquivos de dados que lêem e organizam o material para a exibição. Uma vez recebido o material, ele é copiado pelo responsável do cinema para um servidor dentro da cabine de projeção, conectado ao projetor da sala. Para isso, porém, é necessária uma senha, chamada KDM (Key Delivery Message), enviada pelo distribuidor, que funciona por um período determinado (uma forma rigorosa de controlar o número de sessões de um filme) e é criada especificamente para o equipamento de exibição em questão. No caso de um filme ser programado em várias salas diferentes, é necessária uma senha diferente para cada cinema, e a repetição de todo o processo de transferência de dados. Imaginem aí a gama possível de incompatibilidades, atrasos, mudanças e imprevistos que envolve a produção de um evento internacional de grande porte e somem a isso o fato de que as cópias 35mm vão ficando cada vez mais escassas, por vezes condicionando a presença de filmes em determinados festivais à exibição digital, e é possível começar a ter noção da complexidade quando se trabalha com 300, 400 títulos - os festivais com menos títulos e cinemas, naturalmente, têm menor margem de erro, mas também de desculpas.

A essa altura, porém, é difícil defender a idéia de que ainda vivemos um momento de transição nas projeções de cinema. Com a declaração de moratória da Kodak e a carta oficial da Twentieth Century Fox de que em até dois anos seus filmes deixariam completamente de circular em cópias analógicas nos EUA, a projeção digital já é o atual padrão de mercado. Sabendo de todas as diferenças entre filme e vídeo, não há motivos para velório que não sejam afetivos. Quem foi a qualquer sessão do Vivo Open Air, no Rio ou em Recife, ou ao Odeon assistir à sessão de O Som ao Redor, filme de Kleber Mendonça Filho rodado em 35mm, viu uma projeção em DCP absolutamente impecável - melhor, inclusive, do que as projeções 35mm de outros filmes feitas no mesmo cinema, no mesmo Festival. Jogando água no chope dos defensores incondicionais do analógico, vale lembrar que o mesmo filme foi exibido no Festival de Brasília em 35mm, com cortes severos nas laterais, pois o cinema improvisado no Teatro Nacional não estava preparado para no formato 1:2.35 - exatamente a dimensão do filme. Por outro lado, colaboradores da Cinética que deixaram para assistir ao filme na primeira reprise do Festival do Rio, no Roxy, tiveram que se contentar com apenas meio filme, já que a projeção foi interrompida em definitivo devido a um pico de energia, e o DCP só permitia retomar a projeção novamente do começo. Além disso, continua fresca na memória a sessão de estréia do filme no Brasil, no Festival de Gramado, interrompida por uma pane no sistema de som da sala. Falamos aqui de algumas sessões de apenas um filme, mas cada título que circula hoje no Brasil tem seguramente um histórico semelhante. Mudam os problemas, mas permanece a regularidade de profusão. 

Falhas e acidentes, porém, são parte da rotina até mesmo dos festivais e dos cinemas mais rigorosos - e, sim, eles existem no Brasil. Temos, por exemplo, o bom exemplo do CineSESC, em São Paulo, do Instituto Moreira Salles, no Rio, e agora da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, que anunciou um upgrade geral em seu cinema, com projetores 4k, servidor DCP e renovação do sistema de som. Mesmo ainda não trabalhando com o DCP, o cine Humberto Mauro, de Belo Horizonte, tem projeções de enorme qualidade, tanto digitais quanto analógicas. Possivelmente, há outras salas no Brasil que não conhecemos e que deveriam estar na lista, mas mesmo assim, e infelizmente, são casos de exceção. Se os problemas com o DCP saltaram aos olhos nos festivais do Rio e de Brasília, por outro lado nossas projeções em 35mm sempre foram marcadas por problemas menos flagrantes aos olhos menos treinados - logo, menos prováveis de ganharem linhas nos grandes jornais - mas igualmente graves, das cópias mal feitas às projeções com janela e lente erradas, lâmpada fraca ou som inadequado. Quem assistiu a Morrer como um Homem, de João Pedro Rodrigues, no Instituto Moreira Salles este ano, viu um filme bastante diferente daquele decapitado no mesmo Festival do Rio três anos atrás, exibido somente em salas que não possuíam a janela e lente necessárias - neste caso específico, janela disponível em apenas quatro cinemas em toda a cidade. Se no mesmo adendo do Festival de Brasília afirmávamos que a crítica ao filme Eles Voltam falava de um filme que efetivamente não existe, os espectadores que viram Neil Young Journeys ou A Irmã da sua Irmã em cinemas diferentes neste Festival também viram filmes diversos - uma vez que algumas exibições digitais também foram feitas com a janela errada, cortando significativamente nos limites superior e inferior da imagem. Outros filmes foram vítimas do mesmo problema no Rio e notícias semelhantes vieram da Mostra de SP.

Há, porém, conclusões possíveis a partir de todas essas variáveis. Pois se a mudança de tecnologia está obrigando os festivais e os exibidores a se adaptarem, o público já se adaptou há muito tempo. Afinal, como afirmava o ponto de partida, a cinefilia hoje não depende mais dos cinemas. Se há, portanto, um lastro a ser barganhado com esse público, tirando-o de casa para enfrentar o transporte coletivo, as filas e os vizinhos de poltrona frequentemente mal educados, é justamente o que abria este texto: a exibição do filme em seu habitat natural, na melhor condição possível - o que nada tem a ver com pipocas com azeites aromatizados e outros estranhos fetiches dos multiplexes modernos. Por melhor condição, entenda-se: do começo ao fim, sem cabeças cortadas ou falas travadas por servidores sobrecarregados, com luminância que não altere as cores e o contraste, e um sistema de som que respeite a mixagem final. O problema que o circuito brasileiro de exibição passa não é o do digital; é o da falta de rigor. Se outrora essa deficiência era transposta pela lei da escassez, o receio de que talvez nunca mais fosse possível ver aquele filme, hoje em dia ela é simplesmente uma péssima decisão de negócios.

O que parece dar o ritmo a toda essa rotina generalizada de problemas é uma dificuldade de definir prioridades e trabalhar com elas em mente. Afinal, o que mais explica a exibição do screener de Germania, no Festival do Rio, com marca d'água do nome da produtora no topo da tela e tudo mais? E como lidar com o preto e branco grosseiro de Boa Sorte, Meu Amor, em Brasília, a imagem congelando a cada cinco segundos em todas as projeções digitais em DCP Teatro Nacional, as caixas de som que invertiam direita e esquerda, etc? As prioridades turvas levam, naturalmente, a uma dificuldade de se adaptar, de conhecer as limitações do cenário presente e modificar a estratégia previamente pensada de forma a potencializá-las. Não é mais questão de atender a uma exigência de purismo cinéfilo (nunca foi isso, na verdade, mas essa desculpa parece ter perdido o resto de cuspe que ainda reanimava uma cola pra lá de ressecada), mas de simplesmente conhecer o produto que se vende e saber quais os compromissos necessários para torná-lo mais tentador a quem compra no mundo real.

Ano passado, publicamos aqui na Cinética uma introdução à cobertura das cabines deimprensa do New York Film Festival. Dadas as diferenças de contexto - trocando a palavra "crítica" por "consumidores", por exemplo, uma vez que aqui não falamos mais de cabines de imprensa - parte do que foi dito segue encaixando como uma luva às experiências recentes:

"Enquanto os festivais brasileiros sofrem todas as consequências de seu voluntário gigantismo (muitas projeções de péssima qualidade, sessões canceladas, atrasos, competição por ineditismo, cabines pouco abrangentes e muitas vezes de filmes de pouco interesse, atraso nas credenciais, críticos e jornalistas tendo que disputar ingressos com espectadores em geral, etc) em nome de um número de títulos cada vez mais sobre-humano, acompanhar as cabines do NYFF era de uma tranquilidade reveladora e salutar. Naturalmente, o problema não é tanto de tamanho quanto de rigor. É possível cortar todos os excessos dos festivais brasileiros e ainda assim não melhorar em nada as condições de exibição dos filmes e de fruição dos espectadores. Não é, portanto, uma defesa do 'ver menos' como se ele fosse, necessariamente, ver melhor. Mas sim de que um festival é feito também de prioridades, e que a impressão do NYFF é a de não comprometer o rigor – não só de curadoria, mas de toda a produção – em nome de uma quantidade maior de filmes, salas de cinema, sessões, dias. E isso tudo parte da percepção absolutamente industrial de que a crítica é parte essencial da cadeia de produção, e é do interesse de todos os envolvidos que ela possa desempenhar seu trabalho da melhor maneira possível".

Não é, portanto, da alçada da arte, mas sim do comércio. O cinema sempre foi as duas coisas e a transição para o digital parece reatar essas duas pontas (não à toa, são justamente os grandes estúdios - as grandes empresas - que determinaram os padrões de qualidade mínimos exigidos pelo DCP, e que continuam negando seus filmes às gambiarras digitais brasileiras) que mercados periféricos, como o nosso, sempre tentaram separar. Desta vez, porém, o nó ficou grande demais, asfixiando o pobre do gato que se tentava vender como se fosse lebre, para alguém que não tinha interesse em comprar nem gato, nem lebre.

Novembro de 2012

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