Prometheus, de Ridley Scott (EUA, 2012)
por Fernando Toste

Vida no nada

Se há algo que move Prometheus, filme que marca o retorno tardio e benvindo de Ridley Scott ao território da ficção científica depois de três décadas, é uma pergunta - uma bastante simples, aliás, e a mais antiga de todas: “por que?”. É a pergunta que surge irremediavelmente quando nos deparamos com os grandes mistérios e que, basicamente, nos define enquanto espécie. Ah, sim, vale lembrar: é uma pergunta que não tem resposta.

Scott, o cineasta britânico famoso pelo apuro técnico e pelo olho clínico na composição de um plano, parece ter redescoberto sua vocação para os grandes temas aos 74 anos de idade, na outra ponta de uma carreira que começou promissora e desandou depois de sua maior aposta artística, Blade Runner - seu terceiro longa-metragem, recebido com frieza e confusão generalizadas em 1982. Era um filme que ousava flertar com as grandes questões e por cuja audácia Scott foi condenado a ter o fígado devorado pelos abutres de Hollywood por toda a eternidade - preso a projetos que não exigiam mais do que a aplicação e disciplina do bom artesão e que lhe permitiam realizar voos ocasionais, a uma meia-altura. É impossível refutar o talento que Scott exibe na maior parte de seus filmes, mas também é impossível desfazer a impressão de se ter acompanhado a obra de um artista frustrado ao longo dos anos.

Com Prometheus, o diretor se coloca (conscientemente, ao que tudo indica) numa posição de enorme fragilidade e audácia - algo totalmente inesperado a essa altura. Scott não apenas se deu a missão de realizar um filme à altura de sua obra-prima - o inigualável Alien -, como também se arriscou a dar um passo além, trocando a segurança de um gênero (o horror) com regras bem definidas (que ele provou dominar) por um salto no abismo: uma narrativa construída em torno da maior das perguntas - e, vale lembrar mais uma vez, uma pergunta sem resposta.

Para alguém acostumado, mas obviamente desconfortável, com o sentimento de frustração, o cineasta parece se divertir com a ideia de realizar um filme cujo pilar central é esse mesmo sentimento. Scott constrói Prometheus como um desses filmes labirínticos, à maneira de O Iluminado ou O Ano Passado em Marienbad, que propõem exercícios de interpretação e que oferecem uma infinitude de becos sem saída à guisa de respostas. Dizer que o filme não cumpre as expectativas por causa de furos de um roteiro encomendado a um dos showrunners de Lost (a série de TV labiríntica por excelência) ou à montagem confusa (realizada pelo sujeito que ganhou um Oscar por emprestar sentido e coerência ao filme mais ambicioso e esquizofrênico de Oliver Stone), é negar o óbvio: Prometheus é um filme que pretende confundir muito mais do que explicar.

No universo de Prometheus, cientistas se comportam como turistas abilolados ou maníaco-depressivos diante de descobertas que podem alterar o curso da humanidade; um robô foge às regras asimovianas e desenvolve um comportamento homicida e amoral; o criador é um espelho distorcido da humanidade, um ser movido essencialmente pelo medo e pela destruição; o dinheiro, a filosofia, a religião e a ciência são reféns de um ciclo de criação e destruição que obedece a uma lógica alienígena implacável e incompreensível. Diante da constatação cirúrgica e inclemente do velho moribundo Peter Weyland (“there is... nothing”), todo o espetáculo de som e fúria se revela um exercício fútil e vazio em torno do grande mistério. No fim, todos estão frustrados (incluindo o espectador que, atiçado por uma campnha de marketing agressiva e brilhante, esperava um filme em linha reta, focado e direto como Alien). Mas entre mortos e feridos, a busca por sentido continua - e por que não?

Ao eleger como tema a busca - e não o destino -, Scott parece liberar toda a energia represada há anos, e o resultado é exuberante. Dispondo de um orçamento gigantesco e de grande liberdade criativa, o cineasta investe no que tem de melhor e tece um espetáculo visual de enorme impacto, extravagante, atmosférico e desbragadamente pessoal. Uma viagem delirante que mescla o pesadelo sexual de Alien com o imaginário pagão de A Lenda e a auto-crítica cristã de Cruzada. Uma mistura, por sua vez, temperada com a obsessão por imagens de sacrifício (que encontramos em Gladiador, Thelma & Louise e Black Hawk Down) e por uma inusitada, inédita e muito benvinda irreverência.

Mas trinta e poucos anos de obediência bovina aos modelos e tendências da grande indústria também cobram seu preço - e Scott não abre mão de ser um "player", ainda que desta vez a balança tenha pendido para o seu lado. O resultado final é uma aberração hollywoodiana e um triunfo artístico que se ressente um pouco de sua incapacidade de cumprir plenamente a promessa do espetáculo - um pouco como Blade Runner antes dele. A impressão de obra inacabada não é nova para Scott. Poucos diretores acumulam na carreira tantas “versões do diretor” e com Prometheus o público já assiste ao filme esperando pelo blu-ray com a versão mais longa e satisfatória. Mas desta vez, o cineasta parece ter incorporado a fama e o procedimento à própria tessitura do filme - dificilmente uma nova versão vai esclarecer pontos incertos e duvidosos que se desdobram quase ao infinito. A impressão que fica é que, se novas cenas forem adicionadas, provavelmente novas questões insolúveis irão surgir.

Com tudo o que tem de imperfeito e estranho, Prometheus é um filme que resgata um artista da mediocridade e revela a alma de um replicante. Não à toa, o filme termina com uma união improvável entre inocência e cinismo, simbolizada pela viagem rumo ao desconhecido do casal expulso do paraíso (mais ecos de Blade Runner) e pelo nascimento do cristo alienígena - uma imagem-síntese embrenhada de calculismo, mas também de uma crença absoluta no poder que o cinema tem de construir uma mitologia particular. É uma proposta audaciosa, arriscada, e que, para muitos, vai se provar indigesta. Mas o orbe lançado no labirinto encontrou uma forma de vida onde parecia não haver nada, e isso já é motivo suficiente para se comemorar.

Junho de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta