ensaio - especial cinema americano hoje Uma
beleza brutal por Paulo Santos Lima
Belo
é uma palavra que abastece uma definição sobre o cinema de Paul Thomas Anderson,
tão cheio de imagens bonitas, bem construídas e elaboradas. E brutalidade é o
termo que melhor explica essas imagens, que dá uma melhor situação sobre a Imagem
(com “i” maiúsculo)... imagem como identidade de um cinema, o de Paul Thomas Anderson
(foto). Curioso é o jogo entre o belo e o brutal, em que se utiliza o primeiro
para se chegar ao segundo, um fazer bonito de cinema para transmitir na tela a
violência do mundo – algo que comparece já no primeiro longa do diretor, Jogada
de Risco (Hard Eight, 1996). O que acontece entre este e o último longa
do diretor, Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007), é que essa
“beleza”, esse fazer cinematográfico, torna-se mais eficiente para enunciar as
questões, sobretudo as da aspereza do mundo, em que a violência toma a pauta das
relações humanas, faz amálgama com afetividades e buscas. Mas
por que belo? E brutal? Belo e brutal são meras terminologias, mas bastante a
ver com o cinema e com o mundo, ou seja, com o cinema e sua natureza de representação
das coisas naturais, do meio. São nomes antagônicos, até, pois a violência e brutalidade
remete à desarmonia (à não beleza). Mas no cinema, a violência, a brutalidade,
a tirania, tudo isso pode se fazer belo, uma vez que a arte visual é pura forma,
e o sangue é tinta vermelha, a espada é uma linha de reluz metálico e a tensão
é a montagem ou o enquadramento em alta pulsação, granulação fotoquímica. Pois
o amálgama de ambos está no cinema de P.T. Anderson, acontecendo justamente na
realização do filme como trabalho estético. Assim, belo é menos o que está enquadrado
(que, aliás, é bastante bonito pelo que ficou intuído como tal pela formatação
clássica, a do clássico cinematográfico) e mais o ato de enquadrar. E sobre a
brutalidade: se ela é um dado da diegese, ela é sobremaneira uma presença visual
no filme, característica do jogo entre plano, contraplano, tempo de cena, atuação
do elenco, uso da trilha incidental, colagem de outras mídias etc. Ao
que foi falado acima, como exemplo, há os longos planos em Embriagado de Amor,
que mostram a extensão do apuro e aflição do atrapalhado Barry Egan (Adam Sandler)
tentando achar o apartamento da enamorada; plano que o pega desde o fundo com
a calma de esperar o ator se aproximar. Semelhante às várias tomadas de Sangue
Negro mostrando a correria de Daniel Plainview para debelar o fogo infernal
duma plataforma de perfuração; labareda esta que, toda símbolo, sinaliza o caos
do empreendimento humano sobre a terra (solo árido que sangra petróleo, barra
o alimento e engole vidas). Ou, para transmitir a crise íntima coletiva, a câmera
que dá pequenos chicotes no corte para outra seqüência em Magnólia. Ou
um simples plano final mostrando Sydney (Philip Baker Hall) escondendo com a manga
do paletó o punho branco da camisa manchado de sangue, trazendo toda uma carga
de violências que só conseguem ser escondidas, superadas até, mas jamais apagadas
(como o plano tão epílogo quanto incerto de Magnólia, com a mocinha que
quando pequenina era bolinada pelo pai, agora cortejada pelo romântico e escrupuloso
pretendente, deixando um sorriso entre o amarelo e a esperança). São
marcas de um cinema bastante formalista, contemporâneo em sua consciência extrema
do aparato e numa formação associada a uma história do cinema mais acessível e
reproduzida, a das locadoras de VHS (e que ganhou força com a geração de cineastas
indies surgida nos anos 90, cujo maior nome é Quentin Tarantino e o mais
bem-sucedido, talvez, Steven Soderbergh). Assim, se a cinefilia de Paul Thomas
importa pouco na análise de seus filmes, já que a criação hoje se faz na centelha
original somada à emulação, as referências a Scorsese e Kubrick elucidam sobre
o que o cinema de PTA fala. Se o descontrole era a pauta dos filmes de Stanley
Kubrick e todas as coisas do mundo desmoronam ao redor dos personagens das fitas
de Martin Scorsese, a brutalidade com a qual o homem tem de conviver na sua atuação
junto ao mundo é o norte das histórias de P.T. Anderson. Assim,
a relação orgânica entre homem e espaço ser a grande conquista de PTA no seu cinema,
da mesma forma que a relação entre o belo e o desairoso e entre a técnica e a
arte, torna-se algo constitutivo. Mais que orgânico, organismo. Em Jogada de
Risco, um jogador veterano ajuda um jovem ensinando-lhe a arte do carteado
e das mesas de bilhar. Ele o apadrinha justamente por ter matado seu verdadeiro
pai, ou seja, torna-se um novo “pai” para curar a ferida que ele próprio causou
ao rapaz. Mas isso é tratado, aqui, ao nível da dramaturgia, da pura relação entre
personagens, e por mais que PTA situe geograficamente essa novela, não há nenhuma
relação entre personagens e mundo. Em
Boogie Nights, Paul Thomas amplifica a trama e a forma, fazendo sobretudo
um exercício de cinefilia, ainda que contextualize melhor geográfica e cronologicamente
sua história, construa uma “atmosfera”, a dos anos 70-80. Ao falar da produção
pornográfica, sua vertida para o videotape, a cocaína fazendo presença, há o choque
entre luz e sombras, entre liberdade criativa e violência – o universo de PTA.
Muitas questões, e o malabarismo da trama aliado à reiteração cinefílica dos procedimentos
cinematográficos, tudo isso cria um quebra-cabeças de peças interessantes, mas
pouco encaixadas, um discurso mais empolado que mirado. Magnólia
vai mais a fundo nessa recriação de cinema, inclusive adotando o filme-painel
de Robert Altman como estrada, e com uma montagem que alinhava os trajetos individuais
dos inúmeros personagens ao longo das 3 h de projeção. A figura do narrador que
inicia o filme mostrando eventos tão atrozes quanto patéticos que atingem as pessoas
conduz o espectador a ler a tese do filme. Se o espaço diegético ainda se mantém
apenas como “tablado” para os atores, o painel, mesmo que cheio de rachaduras,
apresenta um “sistema”, um mundo que bem pode ser a representação deste nosso
mundo. Em
Embriagado de Amor (2002), PTA consegue finalmente construir uma relação
sanguínea entre personagem e espaço. A conjunção de luz, profundidade de campo
e banda sonora que o diretor já utilizava a rodo nos outros dois filmes, ganha
costura aqui, com música criando distanciamentos, inserção de cenas surrealistas,
palheta visual multicolorida, eventos absurdos acontecendo na profundidade de
campo atrás do personagem. O centro desta obra quase felliniana é um único
personagem, Barry Egan, que não sabe direito quem é no mundo, mas ele é efetivamente
“do mundo”, pois seus tropeços fazem consonância com as brutalidades do meio,
que vão de acidentes estrambóticos a um disque-sexo que achaca seus clientes.
Com uso mais efetivo dos recursos cinéticos, curiosamente é o filme mais estilizado
de P.T. Anderson, com reflexos na lente, trilha que se faz notar como trilha pelas
descoladas que dá naquilo que está musicando, espaços filmados com geometria total,
claro e escuro quase pictóricos. Pode-se dizer que Sangue
Negro é o projeto de Embriagado de Amor levado ao cosmos, mas é mais
outra coisa: a visão de mundo de um cineasta levada ao sideral cinematográfico,
apresentada não mais como uma aulinha dada por narrador e imagens simbólicas,
mas no amálgama total do ator-ícone, o espaço onde atua (a cena) e sentido coordenado
pela decupagem. Se
o mundo terreno e dos homens é efetivamente traiçoeiro e inesperado, que o filme
comece, portanto, com o plano fixo de uma montanha no meio do nada e com uma trilha
de dissonância releva. Uma imagem sem plaquinhas sinalizadoras, que tanto remete
ao Greed, de Eric von Stroheim, como ao Contatos Imediatos do Terceiro
Grau, de Spielberg, ou tanto a um western quanto a um thriller.
Ou a uma epopéia, à vida que escorre seu sangue na terra. No buraco escuro, o
homem de pedra, rústico, duro, brutal(izado) e empreendedor Daniel Plainview cavouca
a terra. Mais tarde, em vez da câmera percorrer espaços à procura de pessoas,
ela seguirá por aquelas vastas e poeirentas terras captadas em scope. As pessoas
já estão nelas, fazem parte do quadro como o povo estivera em Deus e o Diabo
na Terra do Sol. Mais interessante é que o simbolismo
presente nos outros longas de PTA (o punho da camisa manchado de sangue provando
inerência violenta da vida em Jogada de Risco, a encenação do cinema vinculada
à performance da vida real em Boogie Nights, a chuva de sapos falando sobre
o indizível da vida em Magnólia e o piano que não é piano mas sim ponto
de mudança em Embriagado de Amor) funde-se à imagem dos poços de perfuração:
a máquina que tira o sangue da terra e mata os homens, máquina feia e bruta mas
elegante em seu movimento perpétuo, máquina que rouba o sangue como o cinema rouba
a imagem... enfim, uma série de alusões que não tiram dessas imagens aquilo que
elas são dentro da diegese do filme: plataformas de perfuração para prospecção
de petróleo. Sangue Negro mostra a saga pessoal de
Plainview, inclusive em paralelo ao seu duplo, o pastor Eli, que ludibria pelo
ganho material. Daniel e Eli, ambos lutam contra a aridez do meio, sugando o resto
dos ânimos à sua volta e domando aquele espaço na marra. Não à toa veremos Daniel
Plainview atirando com um rifle contra mobílias espalhadas em seu casarão. Daniel,
mesmo ricaço, bêbedo, curtido a malte escocês, dorme no chão. O chão, de madeira
encerada ou de terra selvagem, é sua única certeza, e ainda assim este solo mostrará
sempre o seu lado mais atroz, no petróleo que atira contra o que está sobre ele. Não
só pelas plataformas de extração, que bem fundem o brutal e o belo do mundo, como
tratado pelo cinema de PTA, o que o diretor faz para resolver em imagens seu discurso
é notável. A extensão do plano para dar a dimensão nefasta da vida, a trilha de
Jonny Greenwood pontuando ora a dissonância do mundo, ora os nobres sentimentos
de amor e melancolia escorridos ralo abaixo, o uso extraordinário do extracampo
em um dos acidentes de trabalho para potencializar a quase inexorabilidade juntos
aos meios de produção: estes são alguns dos recursos utilizados pelo cineasta
e que, mais bem elaborados que antes, não saltam aos olhos, tão costurados que
estão entre si. O mesmo para o que o que está sendo narrado, que começa simbólico
nos primeiros 10 minutos para seguir por um caminho mais dramatúrgico, guerra
entre dois homens, ou dois modos de usurpar o tesouro do mundo: da terra e dos
homens. E meio a isso, há a recorrência aos temas caros a PTA, que vão além da
violência sangrenta do mundo e passam pelas relações afetivas transtornadas por
rancores ou assombros, laços familiares criados além da consangüinidade e devido
à solidão e desespero. Março de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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