Inimigos
Públicos (Public Enemies), de Michael Mann (EUA,
2009) por Filipe Furtado Imprima-se
o mito
Inimigos Públicos
alcança seu clímax não no confronto final entre John Dillinger e os agentes federais
no seu encalço, mas na cena imediatamente anterior, em que o famoso ladrão de
bancos assiste a um filme de gângster num cinema. A idéia em si é simples – Dillinger
reconhecendo-se na narrativa hollywoodiana –, mas a execução é engenhosa: através
do cuidadoso trabalho de edição, Michael Mann reconstrói o filme diante dos olhos
de Dillinger por meio da sua montagem. Naquele encontro entre criminoso e a versão
hollywodiana do seu filme reside a idéia central que anima este novo trabalho
de Mann: a forma como cinema eterniza gesto e o imbui com uma verdade própria.
Eis um veículo vagabundo para Clark Gable, mas ali em meio a todo um aparato melodramático
há algo com o qual Dillinger se identifica profundamente. O próprio filme de Mann
opera da mesma maneira: transforma fatos em mito e mito em uma outra verdade que
só pode existir através do cinema. O cineasta procurou
filmar todo o filme nos locais onde os principais eventos da carreira de John
Dillinger aconteceram e realizou um trabalho obsessivo de reconstituição. Mas
esta preocupação com autenticidade existe numa esfera bem diferente de outros
filmes de época: Mann nunca se fixa em suas locações com um olhar fetichista,
pelo contrário, há uma quase displicência em como as filma. É uma questão filosófica:
basta a Mann saber que Dillinger esteve ali que parece vir daí uma certeza de
que uma força naturalmente emanará destes espaços sem que o cineasta precise valorizá-los.
Complicando ainda mais esta relação com autenticidade, Mann filma quase tudo com
câmeras digitais que garantem que a imagem do filme permaneça sempre distanciada.
Inimigos Públicos é mais discreto sobre seu uso do digital que os outros
filmes recentes do diretor, mas talvez ainda mais radical. Torna os anos 30 do
filme tanto mais modernos diante dos nossos olhos como ainda mais perdidos no
tempo. Curiosamente é um efeito não muito diferente daquele que John Ford extraiu
do tom artificial das filmagens de O Homem que Matou Facínora. Por
toda sua autenticidade, Inimigos Públicos é tão falso quanto o filme pulp
que John Millius dirigira sobre a mesma história em 1973. Para Mann a idéia de
filme histórico pouco tem a ver com o “baseado em fatos reais”. Todos os fatos
de Inimigos Públicos são da ordem material (lugares, roupas, objetos) e
existem para serem devolvidos ao mito e ao melodrama. É como se Mann estivesse
fascinado pela idéia de dissolver o concreto no abstrato e dali extrair outra
representação que só possa existir eternizada na imagem. Não surpreende que um
dos elementos mais memoráveis do filme seja a luz dos disparos de metralhadora
e o som que os acompanha. O outro elemento memorável, aquele pelo qual o projeto
de Mann se concretiza, é a presença de Johnny Depp. Os demais atores só importam
na medida em que lhe apresentam um contraste: Stephen Graham e a grosseria de
seu Baby Face Nelson; Christian Bale e seu Purvis mecanizado, quase uma caricatura
do profissional da lei estóico de outros filmes de Mann. O roteiro poderia até
sugerir uma retomada de Fogo Contra Fogo, mas o filme não deixa duvidas
que a Bale cabe pouco mais que rescindir ao pano de fundo. Inimigos
Públicos não tem espaço para a Grande Depressão que tornou Dillinger uma celebridade,
para noções habituais de construções de personagem ou mesmo para os tiques autorais
à Melville que marcam outros trabalhos do cineasta. Toda a espessura do filme
está contida em Depp acordando ao som de tiros ou olhando tenso à espera de que
um semáforo se abra. Trata-se de um dos filmes mais fragmentados de Mann, mas
também seu trabalho mais próximo ao ritmo do seu ator central (Depp é um avanço
considerável em relação a Collin Farrell ou Jamie Foxx). Numa das melhores cenas,
Dillinger passeia pelo quartel general do FBI e olha aquele sem numero de informações
sobre ele espalhadas pela parede, horas de trabalhos de inúmeros burocratas que
dizem muito menos sobre o criminoso do que a postura de Depp enquanto as observa.
O Dillinger de Mann/Depp habita a imagem e a intensifica. Este não é o mais honesto
dos filmes sobre o ladrão, mas sabe aquilo que Dillinger compreende ao ver Clark
Gable em ação em Manhattan Melodrama: ele transforma uma série de mitos
numa verdade que dura, ao menos ao longo dos seus 140 minutos. O
que diferencia Inimigos Públicos de todo o resto da sua filmografia, é
que todas as suas obsessões não são aplicadas na narrativa ou mesmo na textura
detalhada do seu submundo. Não surpreende que Inimigos Públicos possa parecer
por vezes impenetrável, que os personagens no entorno de Dillinger se transformem
num borrão de coadjuvantes só distinguíveis para quem tem alguma intimidade previa
com ele (num contraste enorme com o perfeitamente delineado submundo de Fogo
Contra Fogo, para ficarmos com o filme que primeiro é associado a Mann). A
ênfase de Inimigos Públicos passa longe dos grandes eventos da trajetória de Dillinger
ou mesmo como seu universo funciona. O filme se basta em observar Dillinger. Uma
falta de ambição? Este parece ser o veredicto de parte da crítica, mas esta falta
de densidade me parece um dos grandes avanços de Mann aqui. Mais do que nunca
um filme que parece se livrar de todos os adereços e se centrar no essencial,
em que todos os interesses do cineasta se traduzem em como seus atores se movem
e se portam em cena. O universo de Dillinger pode ser aparentemente menos definido
do que o dos ladrões de Profissão: Ladrão ou Fogo Contra Fogo, mas
graças a esta mudança de foco seu universo é preenchido por ainda mais vida, movido
menos pela pesquisa e dramaturgia e mais pela presença dos seus atores (e se o
filme tem uma limitação é justamente as seqüências em meio ao FBI não compartilharem
da mesma força). Para compreendermos melhor onde Mann quer
chegar é útil observar a relação do filme com duas lendas do período: todas as
versões ficcionais – e a maioria das de não-ficção – apresentam a informante que
dedurou Dillinger ao FBI com um vistoso vestido vermelho para sinalizar sua presença
para os agentes; já Mann vai buscar a verdade e coloca sua atriz num bem menos
berrante conjunto branco e laranja. Por outro lado, quando precisa apresentar
o encontro do FBI com Pretty Boy Floyd, ele decide manter a versão embelezada
de Melvin Purvis de que ele teria desarmado o criminoso com um chute. O mito material
precisa ser corrigido e alinhado com os fatos, mas o gesto grandiloqüente da auto-narrativa
de Purvis é eternizado mais uma vez. A relação de Inimigos Públicos com
o gesto de chutar uma arma é bem diferente daquela que o filme estabelece com
uma peça de figurino. Adereços podem se curvar à ditadura das informações, porque
no fundo são irrelevantes, já o gesto grandiloqüente de Purvis é expressivo demais
para ser corrigido. O cinema brota naturalmente dali e o olhar de Mann jamais
poderia ignorá-lo. Agosto de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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