in loco - cobertura dos festivais

Puffball (idem), de Nicolas Roeg
(Inglaterra/Irlanda/Canadá, 2007)
por Rodrigo de Oliveira

Entre a matéria e o etéreo

Entre todas as estranhezas que Puffball nos apresenta, talvez aquela de maior força seja a imagem recorrente do útero de Liffey, a jovem arquiteta que se muda para o interior da Irlanda e se vê envolvida numa trama macabra de magia negra e pactos para gravidez. Vemos a imagem interior de seu útero no momento exato em que é preenchido pelo esperma do namorado, depois ainda o momento da fecundação dos óvulos, um aborto espontâneo, a relação adúltera com o marido de sua nova vizinha, eventualmente um novo feto crescendo em seu ventre. Invadindo a narrativa como se fossem excertos de um filme de ficção científica (a associação do ambiente intra-uterino com o universo espacial é óbvia e imediata), estes pequenos trechos são as marcas mais profundas de um horror que, fora dali, Nicolas Roeg falha clamorosamente em construir.

Não deixa de ser curioso que estas mesmas imagens do útero, do canal vaginal, das entranhas, tenham sido vistas recentemente nos filmes de outros dois veteranos como Roeg. Além das diversas punhaladas no coração, vistas de dentro do corpo de Zé do Caixão em A Encarnação do Demônio, José Mojica Marins produz uma de suas imagens mais perturbadoras quando filma, também do ponto de vista uterino, um rato sendo introduzido numa mulher a quem tortura. Em chave completamente oposta, do puro prazer pela experiência zoófila, Alessandra Negrini é penetrada por um bicho da mesma espécie em A Erva do Rato, de Julio Bressane, num mesmo plano “de dentro”. A questão aqui não é definir um limite para a exploração que cada um faz dessa encenação interior, nem em que sentidos pretendem investir ao serem tão radicalmente violentadores de uma mise-en-scène que se dava no mundo para interrompê-la, em pouco segundos, por esse ambiente que é ao mesmo tempo pertencente à natureza das coisas e tão narrativamente antinatural. Mais importante é pensar como estes velhos cineastas alcançaram esta ascendência sobre os corpos que filmam, a ponto de promoverem tamanho escrutínio – e mais, de estarem tão seguros que é ali, e só ali, que seus filmes poderiam realmente existir.

Que os três filmes tratem, direta ou indiretamente, da obsessão pela concepção de uma nova vida, não importa a partir de que métodos (todos eles invariavelmente funestos), parece dizer muito sobre a sensação de arcaísmo que os permeia. Roeg, Mojica e até mesmo Bressane: rigorosamente pré-psicológicos, pré-shakespearianos, como se estivessem lidando com o drama em sua forma mais bruta, mais instintiva, ainda não contaminada por qualquer senso de civilização – mesmo que tudo ao redor prove que ela exista, como um duplo reprovador dessas realidades ancestrais que os diretores reproduzem. Mas, por mais que insista num exercício de gênero muito claro (o suspense místico sub-Stephen King), Puffball diverge radicalmente de seus irmãos brasileiros justamente por negar a única concessão que estes fazem ao clima de primitivismo: onde Mojica e Bressane se esforçam incrivelmente para preencher seus filmes de uma trama de articulações internas, verbais e visuais, o universo de Nicolas Roeg é também pré-lingüístico. O equívoco aqui é simples: o que se cria é um acumulado de objetos, de peças-de-cinema que se aglomeram sem qualquer intimidade entre si, formando um filme onde as imagens estão completamente despidas de sua potencialidade expressiva. Algo fatal num projeto que pretende impressionar pela provocação de sensações que na tela aparecem apenas como dado, nunca como afeto.

É outra a motivação de Puffball. Roeg tenta aproximar mesmo a maior das bizarrices de uma idéia de natureza, de um estado psicótico que paira sobre a pequena região rural irlandesa onde o filme se dá como se tudo o que parece completamente fora da ordem (dos sentidos, dos valores, das crenças) fosse, na verdade, a manifestação do que há de mais natural ali naquele ambiente específico. Não é, evidentemente, uma idéia nova: quantas vezes não vimos casas assombradas por tragédias do passado serem tomadas como um corpo de vibrações próprias e devidamente naturalizadas dentro do universo ficcional dos filmes. No caso de Puffball, no entanto, a impressão de que o horror e a loucura são parte da atmosfera se dá através de indícios materiais: nunca há suspense, nada é propriamente sobrenatural. A Roeg o que interessa são as provas físicas desta perturbação, e o desdobramento mais importante para uma emoção é a sua transformação imediata em objeto, em coisa visível e tocável.

Está lá, antes de tudo, a tal puffball do título, um fungo da família dos cogumelos, forma esférica branca e estranhíssima que assume correspondência imediata com o ventre da arquiteta Liffey, símbolo nada dúbio da fertilidade que também significa envenenamento. Sapatos de criança escondidos num porão secreto dão a chave para um flashback que nos mostra as razões da assombração, e o flashback curiosamente não pertence à memória de nenhum personagem, surge no filme através de uma neblina que invade a floresta, como se fosse mesmo parte do ar. Uma velha bruxa faz sua magia negra com uma camisinha usada num ritual que envolve sua neta adolescente nua à noite no meio das árvores; a infidelidade da protagonista é regada a vinho local, e se dá de maneira incrivelmente bruta, em meio ao feno e a lama. A grosseria está na cena, mas também nos cortes sempre abruptos, nas diversas fusões, nos diálogos rasteiros e sempre direto-ao-ponto – é um universo que opera pela rudeza mesmo, ser delicado e bem articulado nunca é uma opção.

Mas aí voltamos às imagens uterinas, ao espaço interior do ventre de Liffey, imagens de uma beleza plástica radical. É justamente o domínio absoluto de tudo o que é físico e que se dispõe pragmaticamente na cena que dá a Nicolas Roeg este passe-livre ao ambiente primordial da transformação do fluído em matéria. O testemunho da geração de um corpo – mais um corpo a compor o quadro, a participar deste reino exclusivamente objetal. O que Puffball não percebe é que há ali, nestas mesmas imagens, uma dimensão etérea, impalpável, que ultrapassa o físico, que é volátil e imaterial por excelência. Um ventre que é também uma galáxia, e por isso mesmo trabalha na chave da expansão, nunca do encerramento. O espanto que essas inserções causam e a estranheza de sua colocação no meio de uma trama rocambolesca e um tanto banal mostram que Puffball esteve condenado desde o princípio a esta incompletude. Um filme sobre o mais absoluto senso de terrenidade que, no entanto, só é verdadeiramente potente e encantador quando deixa escapar, por puro acidente, estes momentos de pura transcendência.

Outubro de 2008

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