edição especial curtas brasileiros 2009
O prisioneiro da máscara de ferro
por Luiz Soares Júnior

Quarto de Espera, de Bruno Carboni e Davi Pretto (Rio Grande do Sul, 2009)


O concentracionismo sempre foi usado em cinema para se falar de alienação e violência: da restrição paranóica do espaço fílmico nos“planos-ratoeira” de Lang em Testamento do Doutor Mabuse ao caráter seqüencial do uso de planos de detalhe no L’argent de Bresson, que imprime ao corpo do personagem a "divisão da cadeia produtiva" que estrutura o filme: circulação de dinheiro versus disseminação de atos de violência. Em Quarto de Espera, o mundo concentracionista começa na própria pele do personagem, que usa uma máscara de gás para se isolar perceptivamente do mundo. Este corpo encarcerado nos limites de uma máscara é o princípio de uma série de estratégias de desarticulação espaço-temporal, que intensificam claustrofobicamente a desolação do mundo descrito: a utilização da elipse, que atomiza os planos, transformando-os em cápsulas lunares – aliás, a metáfora tem cabimento, dado o visual de fábula apocalíptica do filme-, em unidades irredutíveis entre si. Os planos em Quarto de Espera, assim como seus personagens, vítimas de um estar à deriva interior e exterior, sofrem de fobia de contato mútua.

Confrontando-se com o uso da elipse, que cava buracos negros na tessitura da relação entre os planos – ou dos planos como uma relação, refletindo, neste sentido, o autismo do personagem, o não-relacionar-se com ninguém no mundo, a começar pelo próprio corpo, ocluso pela máscara, temos planos desoladoramente longos, tumefactos, infletidos pelo peso de uma duração que não se escalona pela linha progressiva do tempo cotidiano ou da narrativa, para frente e para fora, mas justamente no sentido/direção contrários. O tempo, aqui, se enrosca sobre si e hiberna; é o tempo do viciado em haxixe, do insone ou do catatônico; flutuante transe-trânsito pelas zonas intermediárias da durée: ressaca, depressão, tédio. No opressor contraplano, temos uma câmera que escruta atenta e inquisitorialmente os outros personagens, numa ligeira contra-plongé que os engolfa no limbo de suas consciências (ou ausência de), como um guarda cuja função consiste tanto em vigiar um prisioneiro quanto velar para que este não se mova, que seja fixado e regulado pelo espaço-tempo do confinamento.

Isolamento, apatia, marasmo: Quarto de Espera é um filme de horror que sofre de catalepsia, aquele distúrbio horroroso no qual o doente é impossibilitado de se movimentar, de interagir com o mundo, embora permaneça alerta o suficiente para se saber vivo, mas como um objeto – alguém que apenas sofre a ação dos outros sem dar a contrapartida. A estagnação da natureza-morta aqui é a regra, o movimento a exceção, como nos mostram estes travellings desordenados que acompanham os atos de violência do personagem, e que espocam inesperadamente no filme, como surtos, irrupções de força e de vitalidade – mesmo que uma vitalidade negativa, destrutiva – num mundo em estado comatoso.



O uso de metáforas em cinema é algo perigoso; a imagem é algo poroso, frágil haste, não suporta ser suporte para correspondências que não encontrem um equivalente concreto, presente no filme. Mas a metáfora em Quarto de Espera cumpre exatamente a função que se espera dela: ser uma ponte, designar uma analogia ou uma relação entre duas instâncias. Assim, o filme todo acaba por respirar a irrespirável experiência de um sujeito que se enclausura dentro do corpo-fortaleza. O ponto de vista se objetiva, se faz matéria; matéria opaca, turva, mas trabalhada com a precisão siderúrgica que lhe infunde, no timing exato do corte e no encadeamento sincopado dos planos, a sombria densidade de um pesadelo feito carne.

Janeiro de 2010

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