As Quatro Voltas (Le
Quattro Volte),
de Michelangelo Frammartino (Itália/Alemanha/Suíça, 2010)
por Eduardo Valente
O
encantamento que nasce do cinema (e do mundo)
No começo de As Quatro Voltas há algo de preocupante na
maneira como Michelangelo Frammartino começa a se aproximar de um pastor
de ovelhas em meio à vida no campo italiano. Ele parece
propor um olhar idealizado, de uma contemplação meio fácil, para
a vida do homem em meio à natureza. Longe disso, porém: logo,
Frammartino vai injetando no seu filme um humor discreto, porém
preciso, que deixa claro que não há qualquer idealização desta
vida na natureza. Muito pelo contrário: na medida em que o homem
passa a fazer parte da paisagem (a ponto de ter seu rosto tornado
campo de passeio de uma formiga), o que Frammartino destaca é
que ele é apenas mais um elemento no meio de um ciclo, nem mais
nem menos importante do que os outros - e nem mais nem menos "puro".
Assim, da mesma forma que é a ação humana que determina os destinos
de uma árvore, de uma série de caracóis ou de um rebanho de cabras,
da mesma maneira será um cachorro, uma cabra e algumas formigas
que determinarão o destino de um homem. O mais impressionante
aspecto do filme de Frammartino, aliás, é sugerido no fraseamento
acima: o que poderia facilmente se contentar em ser apenas um
filme de olhar distanciado, algo entre o cinema de arte autocongratulatório
pelo seu “olhar delicado” e um National Geographic humanista (e
o diretor demonstra ter cacife e facilidade para fazer um exemplar
de ambos muitíssimo bem resolvido), na verdade é um filme de imenso
controle do seu andamento, seja através do ritmo, seja através,
principalmente, de uma precisão absurda de enquadramentos.
De
fato, não é por acaso que enquanto vemos o filme pensamos em Jacques
Tati, ou mesmo em Elia Suleiman, por tabela: Frammartino finge
deixar nascer do mundo, naturalmente, uma narrativa (que terá
direito a uma mudança de protagonista na metade que não deixa
dever nada ao Lost Highway de Lynch), quando de fato ela
é colocada em movimento de modo incrivelmente preciso. Embora
seja um filme sem nenhum diálogo, e literalmente protagonizado
em metade do seu tempo por animais e até mesmo uma árvore, As
Quatro Voltas tem uma capacidade impressionante de não
apenas saber muito bem o que deseja fazer, como encontrar os melhores
meios para fazê-lo, cinematográfica e narrativamente. Mas, mais
do que isso: como poucos filmes neste circuito de festivais cada
vez mais viciado e sem surpresas, As Quatro Voltas nos
deixa partilhar de alguns daqueles momentos no cinema onde ainda
soltamos um “oh” encantado. Não é pouca coisa.
Maio de 2010
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