in loco - cobertura dos festivais
Reconversão (Reconversion),
de Thom Andersen (Portugal, 2012)
por Filipe Furtado
A
vida nas ruínas
“Se os objetos são ruínas
ou tem potencial para sê-lo, se eles são sujeitos
a mudanças de uso e significado, se eles têm sucesso
no tempo e no espaço para ir além do seu destino,
então podemos dizer que a cidade é funcional”.
-- Off de Reconversão
Thom Andersen sempre se preocupou com história e, ao longo
da última década, esta preocupação
se transformou numa sobre a história dos espaços.
É uma outra forma de dizer que, desde Los Angeles Plays
Itself, a obra de Andersen se ocupa de uma só questão:
exatamente o que na relação do homem com seu entorno
revela sobre ele. Reconversão partiu de uma encomenda
do Festival de Curtas de Vila do Conde, em Portugal, mas o interesse
de Andersen sobre a obra do arquiteto do Porto, Eduardo Souto
de Moura, era grande demais para um curta, e assim o cineasta
usou o convite para produzir um filme de pouco mais de uma hora.
Andersen se ocupa de resgatar dezessete obras de Souto de Moura,
e as anotações do arquiteto sobre seu trabalho ao
longo dos anos, que revelam muito sobre suas intenções
e, principalmente, a relação que o arquiteto trava
com sua principal matéria-prima: o espaço dos terrenos
que recebe.
O
que Andersen encontra em Souto de Moura é a possibilidade
de uma investigação sobre o significado e a necessidade
de reconverter um espaço noutro. Dominado pela praticidade,
nosso olhar acredita sempre que o espaço deve ser o mais
simplificado e utilitário possível, mas Reconversão
é todo construído a partir de uma consciência
precisa de que cada espaço traz com ele uma história,
e de que é necessário saber reconhecer que uma relação
saudável com espaço transpassa por incorporá-la,
seja mantendo a peça histórica em meio à
estação de metrô modernista, seja reconhecendo
as necessidades que cada espaço trazem consigo. Souto de
Moura explica longamente como, para construir uma piscina numa
pousada adaptada a partir de um antigo mosteiro, foi primeiro
necessário localizar uma depressão pouco visível
e depois rodeá-la de arvores – já que não
faz sentido um mosteiro com piscina, se a ideia é manter
a aparência anterior daquele espaço, é preciso
buscar soluções alternativas e respeitar sua história.
Numa das melhores sequencias de Reconversão, o
funcionário de um estádio em Braga aceita fazer
um tour arquitetônico pelo lugar, mas estranha o interesse
de Andersen pela pilha de restos de cadeiras (arrancadas por torcedores)
que se acumulam num dos cantos do estádio. O funcionário,
mais preocupado em observar como “as formas arredondadas
representam o estilo do arquiteto”, questiona sobre o interesse
da equipe naquele monte de cadeiras que não foram projetadas
por ele. O filme àquela altura já explanara longamente
sobre o interesse de Souto de Moura não só pelos
espaços que herda, mas principalmente pela fronteira entre
a obra e o externo e os efeitos do tempo sobre eles. Logo, aquelas
cadeiras representam bem mais do que uma simples pilha de lixo:
são mais um elemento que enriquece o espaço ao redor
daquele estádio, que ajuda a marcar sua individualidade.
Já nas primeiras sequências do filme, Andersen localiza
o gosto de Souto de Moura pelas paredes (e, ainda antes disso,
da arquitetura do Porto em geral pelas pedras de grafite). As
paredes demarcam o espaço, são a superfície
da obra, e demarcam esta fronteira entre ela e a natureza que
já estava lá antes da nova construção.
São elas que fazem a mediação que tanto interessa
a Reconversão. São as paredes também
que frequentemente sobram como ruínas, em um filme fascinado
com a ideia destas, com os traços que a história
deixa em cada local. Toda obra arquitetônica em Reconversão
nasce e termina em ruína. Os espaços são
assombrados por esta consciência histórica, mas seguimos
recusando-a: num dos momentos mais tristes do filme, as anotações
do arquiteto recordam quando, da construção de um
conjunto de casas, preservar uma série de paredes antigas
era forma de ao mesmo tempo conservar o que já estava lá
e manter as casas novas menos expostas. Semanas após a
obra terminada, as autoridades locais mandaram por as paredes
abaixo. Quem afinal precisa de um par de paredes antigas?
Em
Reconversão, a arquitetura é uma arte passageira,
perdida em meio à eternidade da história: nasce
da ruína e para ela esta destinada a retornar. Num outro
momento do filme, Andersen oferece o melhor exemplo da sua ideia
de reconversão: um par de paredes pré-existentes
serve de principio para a construção de um mercado
erguido, basicamente, sobre uma série de colunas e um teto
sustentado por elas. O mercado dá vida a todo um bairro
e, anos mais tarde, fecha. Mas o bairro prospera e, diante da
dúvida de o que fazer com uma construção
conhecida, mas sem função, o arquiteto é
chamado de volta e simplesmente retira o teto para transformar
um espaço fechado em espaço aberto e redimensioná-lo
como local público.
O homem em Reconversão segue sempre em suspenso,
perdido em meios aos ecos de cada lugar. Andersen e seu fotógrafo,
Peter Bo Rappmud, filmam todas as pessoas que entram nos seus
planos num número menor de frames por segundo, garantindo
a artificialidade dos seus movimentos, reforçando que elas
são apenas uma presença passageira em cada lugar.
Reconciliar o homem com a sua história é a missão
que Thom Andersen tomou para si desde Eadweard Muybridge,
Zoopraxographer. É um gesto político que se
traduz perfeitamente quando Souto de Moura expõe sua filosofia
“se não há nada ali, eu invento a sua pré-existência”.
Outubro de 2012
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