Cinturão Vermelho (Redbelt), de David Mamet (EUA, 2008)
por Paulo Santos Lima

O abismo do homem

David Mamet é um diretor-roteirista que trabalha o cinema como uma aula, construindo imagens que servem como ilustração para uma tese. Assim sendo, o material que essas imagens carregam, acompanhadas de caudalosa massa verbal, é de uma clareza e limpidez exemplares, grandes portadoras de mensagens (fatos, dados, o que não é um problema). Desse modo no qual as coisas surgem isoladamente transparentes e bem definidas, as ambigüidades e nuances vêm da relação entre os elementos na diegese e em cena, e não neles em si. É como uma aula cuja lousa é a tela do cinema, em que as equações escritas pelo professor contêm dados díspares entre si e cujo resultado denuncia uma disfunção (os universos criados por Mamet funcionam justamente por sua disfunção moral). Diante disso, o último plano de Cinturão Vermelho merece toda a atenção, por dar conta de toda uma discussão expositiva que percorreu todo o filme (ou, de certa maneira, toda a obra de Mamet), sobre um sistema em total desando de princípios.

Não é pouco, se virmos que em Cinturão Vermelho o diretor leva ao extremo essa sua gramática dissertativo-expositiva, refinando sua caligrafia ao limpar uma dramaturgia e deixar no filme apenas o extrato: o corpo em cena com sua respectiva voz. O principal deles, no caso, é do protagonista Mike Terry (Chiwetel Ejiofor), que não à toa é um professor – um professor que defende uma teoria que, ao aplicá-la, sofre e faz outros sofrerem. Porque o mundo, segundo Mamet, funciona ao modo dos enguiços morais e princípios tortos. O mundo é assim, enfim. E Mike tem no jiu-jitsu um modo de estar no mundo, não uma mera violência utilizada para se ganhar dinheiro. Ocorrem percalços entre ele, sua mulher (Alice Braga), um amigo policial que defende uns trocados trabalhando de segurança, um ator, um produtor de Hollywood e um manager das lutas. A lista parece extensa para um texto, mas é fundamental para se entender que o protagonista está de um lado e o resto das pessoas (e do mundo) do outro, com alguns mais inclinados à podridão das lutas arranjadas e pequenos crimes gerando sobre o mundo do cinema e outros ainda com certos princípios de retidão e pureza.

Como professor (na história e no filme), Mike falará sobre a sua escola de luta ser mais importante que ganhar uns trocados nas marmeladas que envolvem as lutas televisionadas que juntam altas somas. Machuca, com isso, a sua relação com a esposa, que é mulher dessas, assim, empresária mesmo (e sensata, segundo a nossa cultura utilitária-capitalista). Porque Mike não se curva ao dinheiro, luta no tablado, mas também para manter intacta a sua honra. É um cavaleiro do bem (mas não do Bem, pela forma como Mamet naturaliza a ganância e fraquezas dos outros personagens).

O maior princípio de Mike, que ganha similar numa aula expositiva na qual um professor consegue fazer concreto uma teoria, é de que sempre há uma saída para tudo. A idéia é que os lutadores tirem na sorte de bolinhas branca e preta e um deles lute com alguma limitação (olhos tampados, perna ou braço atado). Mesmo em desvantagem, o azarado pode vencer o adversário. Este ensinamento, apresentado na primeira seqüência do filme, vai ser uma questão dramática ao longo do filme por significar um refinamento e pureza de princípios nobres e também porque a tal idéia é roubada por um figurão da liga de luta para fins midiático-financeiros.

Está claro, nisso tudo, que há uma grande gama de escolhas e chance real de não sucumbir à pequenez e falcatrua das coisas. Mas há, como mostra o roubo que nem chega a ser um roubo (“porque não houve patente”, diz o advogado do patife, rebatendo a advogada de Mike que é, aliás, bastante desajustada), uma dinâmica que engolfa as coisas, contamina e liquidifica os fundamentos filosóficos. Não estamos, aqui, num contraponto entre pureza e sujeira, mas sim entre princípios distintos. Um mundo que segue uma pauta que naturalmente deturpa princípios filosóficos, que deixa a experiência humana na beira. Um mundo que não é necessariamente errado, ou, pelo menos, não é assim que David Mamet choraminga em seus filmes, preferindo a mordacidade (O Assalto) ou o riso cínico (Deu a Louca nos Astros).

Voltando à questão inicial, a da aula expositiva, é certo que desde Spartan, a imagem per se ganhou maior presença nos filmes de Mamet. Ali, talvez, fosse até um exemplar mais concreto de supremacia da imagem sobre o texto falado (há uma imagem que ilustra o rompimento do personagem de Val Kilmer com a corporação corrupta quando ele enrola um cigarro com o impresso que traz as regras do grupo). Agora, em Cinturão Vermelho, há uma “recuperação”. Recuperação de certos temas de Mamet para, então, levar à síntese uma discussão que ele trata há tempos sobre a composição desintegrada (desintegrante?) do mundo dos homens e homens do mundo.

Mike é quase um meio, um instrumento de emissão de uma mensagem, de um comunicado, de um assunto, de um conteúdo. Isso está à beira do antinaturalismo, tamanha a veemência com que as coisas são faladas e as relações apresentadas (o casal Mike e a esposa Sondra é um embate de valores, e o drama natural que surge dessa relação conflituosa é diluído). Mas o corpo, aqui, tem uma presença forte, que raras vezes se viu num cinema afinado ao teatro existencial como é o de Mamet. E é o meio de intenções, ação, consagração dos princípios individuais (como a personagem de Rebecca Pidgeon faz com seu belo material corporal em O Assalto). No caso de Mike, é com seu corpo que ele tentará manter limpa sua bolha de integridade, mesmo tendo que sujá-lo com o lodo dos larápios e espertalhões. E aí vem a tal imagem final, que é de uma potência gigante, quando o mestre mundial do jiu-jitsu entrega o tal cinturão vermelho para Mike, que de forma alternativa, fora do ringue, derrota o oponente que simboliza o status quo da contravenção.

Depois de assistir a Mike ser esmagado por todas as frentes, tendo sua criação roubada, se enrascando com os figurões do cinema, mulher irritada e amigo em perdição total (tudo isso em prol dos seus princípios inegavelmente íntegros, mas que o filme coloca em oposição a um senso prático bem encaixado num mundo eticamente deformado), vemos o nosso herói, que está mais para Dom Quixote, tendo sua imagem congelada no último plano do filme. Aqui, a presença conjunta de elementos cria um organismo selvagem, porque abre o filme para o buraco negro. Mike denunciará ao grande mestre a marmelada da liga de jiu-jitsu? E o cinturão vermelho, que é símbolo da grandeza, integridade e filosofia deste esporte, mas que passa por cinturas de homens voltados a outros valores menos elevados? Atendo-se à imagem, a impressão é que Mike fora vencido pela ordem das coisas, calado por um cinturão contaminado que se volta como um bumerangue contra aquilo a que ele deveria defender. Ou o abraço de um ingênuo mestre que está alheio à podridão.

Imagem forte, das mais fortes do cinema de 2008, ao trazer de modo estanque a consagração do torto, do lodo, da disfunção... enfim, trazer num still repentino toda uma desintegração de princípios humanos. O homem mergulhado no abismo escuro.

Julho de 2008

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