A Rede Social (The Social
Network),
de David Fincher (EUA, 2010)
por Pedro Henrique Ferreira
Radiografia
de um meio
A grande meta de A Rede Social é
instaurar um conflito entre um formato narrativo influenciado por
novas tecnologias e uma radiografia temática que nos leva
a crer que este mesmo fenômeno tem raízes mais antigas
do que a geração século XXI, mergulhada em
seus próprios meios. Assim, o que vemos se desenrolar na
tela é uma grande pesquisa (ou melhor, investigação)
da natureza de uma ferramenta - suas bases e proveniências.
O ineditismo das percepções de David Fincher, que
fazem de A Rede Social um dos grandes filmes do ano no
circuito comercial, vai muito além de seus cacoetes formais,
das técnicas de montagem, táticas de construção
não-linear, entre outros recursos influenciados pela invenção
da internet e das redes sociais. Envereda para uma compreensão
antes histórica do que circunstancial, e se o "navegar
em rede" ou o "bate-papo"é efetivamente uma
influência direta no tecido narrativo da obra, isto serve
mais para evidenciar um paradoxo do mundo atual do que para dar
expressão a uma geração ou a uma mitologia
moderna. As percepções inéditas deste paradoxo
são irônicas e catastróficas, de um lúgubre
realismo, e trazem a força de um desamparo sem fim.
Zodíaco
executara um movimento semelhante, e precisa ser visto como uma
obra que se agrega à tradição literária
de gênero policial e cinematográfica de investigação,
onde todo o movimento se concentra na busca por uma explicação
correta dos fatos, ao mesmo tempo em que permite uma radiografia
do pânico social norte-americano. O que se põe agora
nesta tradição, desde Zodíaco, são
as bases de um mundo global interconectado por redes sociais, onde
o temor se espalha com mais velocidade e as informações,
por vezes infundadas, talvez desvirtuem mais do que efetivamente
coloquem o investigador na trilha de seu objeto.
Aderindo à mesma guinada, A Rede Social parece adquirir
mais consciência quanto à real natureza do problema.
Narrativamente, o filme é organizado a partir de dois centros
propulsores que se entrelaçam, isto é, os dois processos
que Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg), inventor do Facebook, enfrenta.
Estes dois processos dizem respeito aos dois grandes paradoxos da
internet: a propriedade intelectual e o direito de autoria.
A criação da internet tem raízes
anarquistas um tanto quanto remotas - foi menos oriunda de uma inventividade
tecnológica e mais de grupos de hackers que visavam
a livre troca de informações. Só mais tarde
seria tomada por grandes empresas atrás dos lucros titânicos
que sua expansão global permitiria. Dada sua natureza "aberta",
temos aí o primeiro paradoxo, em um conflito entre sua tendência
liberal fundamental de tornar homogênica a posição
de todo navegador, garantindo-lhe a liberdade de acesso a toda informação
disponível, e a empreitada sempre frustrada das companhias
capitalistas de limitar este acesso para lucrar com isto. Em essência,
a internet nunca reconheceu estes parâmetros. Isto é,
nunca reconheceu a propriedade.
Isto
implica em alavancas narrativas bastante específicas, que
perseguem Fincher desde, ao menos, Seven: um terceiro (ou
quarto, ou quinto) elemento pode tomar para si ou agregar-se à
linha central da narrativa em uma intervenção repentina,
modificando a progressão natural do processo, ou renovando-o
quando ele parece exaurido. A narrativa também pode verter
repentinamente do drama central para uma visão de um acontecimento
absolutamente individual que, até então, não
surgira, e que, a partir de então, abraçará
como dono a armação primeira da história. Em
A Rede Social, este paradoxo está impresso diretamente
na figura de Sean Parker (Justin Timberlake). Mas esta abertura
só é permitida graças a um sentimento de concomitância,
de abolição do tempo (mais afetivo do que concreto),
onde tudo que é dito é exposto em demasia é
colocado sob um regime de homogeneidade. A informação,
na medida em que se torna mais acessível, globalizada, e,
portanto, mais passível de furto, de apropriação,
também se torna desenraizada, oriunda de fontes questionáveis.
O segundo paradoxo regula-se com o primeiro. A internet não
tanto reformulou as relações entre emissor e receptor
- a interatividade, diga-se de passagem, é uma palhaçada
moderna - quanto abriu corredores para um dado mais relevante: todos
passam a ser narradores em potencial. A informação,
na medida em que passa a ser acessível e homogênea
em status, torna-se também abundante e heterogênea
em natureza, carecendo de fontes confiáveis e veracidade.
Esta é a razão pela qual o serial killer de
Zodíaco não pode ser encontrado, e, também,
porque não podemos vir a determinar de quem é a real
autoria do fenômeno Facebook em A Rede Social. Uma
informação ou uma invenção provém
da outra, e todas são apenas rastros fantasmagóricos
que carecem de história, de um enraizamento mais fortuito.
A internet também jamais reconheceu a idéia de autoria.
Este segundo paradoxo, em A Rede Social, está impresso
no processo movido pelos irmãos Winklevoss (Armie Hammer).
Assim,
os dois processos jurídicos amarram uma quantidade infinita,
contraditória e inconfiável de relatos nos quais
o corpo narrativo do filme encontra sua consistência. Mas,
apesar destes espectros, a narrativa ainda mantém um foco
deveras central. Jamais estes relatos adquirem uma pessoalidade
ou um caráter confessional qualquer: são impessoais,
narrados sempre simples e unicamente em terceira pessoa, reservando-se
de qualquer espécie de emocionalismo. Em realidade, o que
David Fincher desenha não é somente um formato que
expressa a vida mental de nosso estado de mundo. Antes, deve-se
executar uma radiografia deste mesmo fenômeno, varrer por
esta quantidade infindável de informação
para ainda tentar retornar ao cerne da questão, isto é,
a veracidade dos fatos. E o que se encontra ao fundo desta pesquisa,
na visão de Fincher, é de uma tristeza absoluta,
de uma solidão incomensurável.
O
único resquício emotivo de A Rede Social
que sobrevive à superficialidade oscilante, à frieza
dissipante e celeridade desta empreitada suicida, se encontra
ligado à figura de Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg), e
tem características semelhantes com o drama vivenciado
pelo personagem de Tyler Durden (Brad Pitt) em Clube da Luta.
Gestos mínimos, de motivações pessoais, adquirem
proporções titânicas, sonoras, resultando
em possíveis catástrofes. Portanto, a radiografia
de um fenômeno amplo termina por não nos direcionar
à veracidade dos fatos, mas a um drama íntimo -
razão pela qual o posicionamento ideológico do filme
não adere a seu próprio tecido estético,
mas o enxerga como um distúrbio. Ao invés de forma
e conteúdo pactuarem de modo singelo, elas geram um abismo
que pode ser compreendido a partir da primeira cena, a principal
cena do filme onde um germe é plantado. Cena que será
revisitada com significativa diferença na seqüência
final, criando um arco narrativo circular onde o meio é
uma contorção de abertura, um desdobramento expansivo,
uma plurificação hiperbólica dos germes iniciais
cujos resultados encontraremos nos instantes finais.
Assim, reconhece-se, entre outras coisas, que as raízes
do mecanismo das redes sociais são desdobramentos das tendências
aristocráticas dos círculos sociais pomposos de
raízes remotas; que as descrições de perfil
advêm do ensejo adolescente de paqueras; que o gênio
de Zuckerberg está antes em compreender uma demanda, em
decifrá-la a partir do mundo que lhe é mais imediato
- e que todo o processo de auto-expansão tem como simples
razão o desejo de um jovem remediar uma relação
amorosa por métodos um tanto quanto infantis. É
o motivo homérico por excelência. A certa altura
do filme, ao reencontrar com Erica Albright (Rooney Mara) em um
pub e novamente ser rejeitado, sua resposta ao amigo
que indaga sobre o reencontro é indúbia: "devemos
expandir". Mas toda esta amplitude que a narrativa adquire
desde seu momento inicial não consegue senão afastá-lo
efetivamente do que então havia. Este paradoxo, enxergado
por olhos injuriados, retira nosso chão à medida
em que nos leva a duvidar não apenas da possibilidade de
um juízo moral que os processos jurídicos procurariam,
mas igualmente da efetividade do contorcionismo narrativo, de
uma tecnologia nova, por si só, realmente modificar a natureza
das relações.
Entre
a seqüência inicial e a seqüência final
- o ponto de partida e de chegada, os dois momentos estáticos
do filme - cria-se um belo joguete paralelístico que deixa
as coisas um tanto quanto no ar. Na inicial, um repertório
de planos e contra-planos íntimos e verborrágicos
em um espaço povoado e vivo onde existe ao mesmo tempo
proximidade e o fim de um relacionamento, presença corporal
e uma acusação de presunção. Na final,
um ambiente árido e vazio, um repertório de planos
e contra-planos entre o mesmo homem e a imagem na tela de computador
do rosto da mesma mulher. Um silêncio melancólico
e uma saudade infinda no olhar, ao mesmo tempo em que, ao invés
da acusação de presunção, sua defesa
por uma outra mulher; ao invés do rompimento de um relacionamento,
também um convite a um relacionamento virtual. Um paralelismo
contrastante sem aparentes denotações morais: o
espectador deve fazer sua escolha neste paradoxo que, para além
das sofisticações narrativas e estéticas,
abriga o que mudou efetivamente nas relações entre
os homens.
Março de 2011
editoria@revistacinetica.com.br |