in loco - cobertura dos festivais
Renoir, de Gilles Bourdos (França/Egito, 2012)
por Raul Arthuso

Vida e arte

Existe uma grande ousadia por parte do diretor Gilles Bourdos em tentar retratar, em Renoir, duas das maiores figuras da história de sua respectiva arte: Pierre-Auguste Renoir (pintura) e seu filho Jean (cinema). A insolência é ainda maior quando se leva em conta que o filme se foca em um ponto de inflexão na vida tanto de um quanto de outro - no caso, o último lapso de vida artística do velho pintor e a definição de rumos do futuro cineasta.

Pode parecer lugar comum associar o ponto de virada da vida de pai e filho a uma mulher (e, num certo sentido, o é mesmo). Porém, como diz o velho Renoir em dado momento, o que deve comandar a estrutura não é o desenho e sim a cor. As personagens periféricas (as empregadas da casa, que em algum momento já foram modelo para o pintor; o filho mais novo de Pierre, que se sente rejeitado pelo pai) habitam o filme como as linhas difusas sob cores intensas dos quadros do pintor impressionista. Mais que incidirem sobre os desenlaces do filme, elas compõem o verdadeiro universo ao redor dos Renoir, guiando-os pela narrativa – e isso se torna literal quando as empregadas levam Pierre, impossibilitado de andar, de um lado a outro ou ajudam o jovem Jean com a perna imobilizada a cruzar um rio. É notável o quanto certas composições de cenas em que as empregadas rodeiam os protagonistas lembram - evidentemente com alguma distância - o teatro de bonecos japoneses, em que pessoas vestidas de preto conduzem os bonecos em cena. No mais belo momento do filme, as empregadas carregam Pierre e Jean a um riacho perto da cachoeira vizinha à propriedade dos Renoir. Lá, Pierre pinta suas empregadas, porém elas não são mais que formas impressionistas, reforçando seu trabalho periférico porém essencial ao movimento dos protagonistas.

Pierre e Jean são uma espécie de contraponto perfeito a isso, na medida em que estão imbuídos de um peso - e que os dois tenham problemas de locomoção só reforça a idéia. Talvez pela perspectiva de lidar com figuras de tamanha importância, tanto Pierre e Jean, é possível sentir os traços das personagens como que se reportando a essa grandeza. Assim, Pierre se expressa na maioria das vezes como o sábio pintor com frases edificantes sobre a arte (como a já citada anteriormente sobre o desenho e cor) ou sobre posturas, como um exercício de copiar e colar frases de efeito de algum livro sobre o artista francês. Jean, por outro lado, é o retrato perfeito do artista em formação, tão perfeito em suas dúvidas e desatinos que é inevitável um certo déjà vu em relação ao tipo que representa. Pierre e Jean emanam um peso que talvez decorra de certo medo pela ousadia de retratá-los.

Dédée, a mulher que muda a vida de Pierre e Jean, talvez represente melhor o que há de força e fragilidade em Renoir. Ela tem a dubiedade de ser apenas uma modelo viva para o pintor - e, portanto, objeto de contemplação -, mas, por sua forte personalidade, transmite uma desejo de vida que contamina os dois artistas. Como personagem periférica, Dédée é um poço de beleza que se mistura com a natureza bucólica das pinturas de Renoir e resplandece enquanto um ideal de imagem; porém, quando aprofunda essa "imagem", o filme entra em caminhos previsíveis, como o passado de prostituição ou o sonho de sucesso a qualquer preço. Dédée materializa em si o paradoxo mais simbólico do que é Renoir: a leveza retratada com certo peso e solenidade. Isso advém em parte da clara influência de Hou Hsiao-hsien no modo de filmar de Bourdos: os lentos travellings e flutuantes movimentos que descortinam coisas para revelar outras (a fotografia assinada Mark Lee Ping Bin não é mero acaso). Aqui, porém, aliados a uma trilha musical um pouco acima de tom, os belos movimentos viram apenas procedimento. Dédée carrega em si as dubiedades e contradições de um filme cujo medo da ousadia inicial conduz à falência. Essas contradições, por outro lado, fazem parte do sopro de vida do processo artístico.

Outubro de 2012

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