O Sobrevivente (Rescue Dawn),
de Werner Herzog
(EUA, 2007)
por Francis Vogner dos Reis

A loucura e a morte

O que mais se diz sobre o cinema de Werner Herzog é que a sua obsessão parte das interações caóticas entre o homem e a natureza. De fato este é o seu assunto, seja na compreensão desta natureza como a insuficiência da cultura em ser criadora de identidade social e orientadora do homem (O Enigma de Kasper Hauser), seja na frustrada aventura humana em forçar uma fraternidade cósmica (O Homem-Urso) ou no empreendimento da razão como princípio ensandecedor em um contexto onde ele nada vale (Fitzcarraldo e Aguirre). Pode-se discorrer à vontade sobre o embate do homem e da natureza no cinema de Werner Herzog, mas é necessário entender como o diretor internaliza essa crise no seu próprio procedimento de filmagem, porque, apesar de óbvio, convém lembrar: o cinema é o triunfo e a subordinação da técnica à natureza.

A aventura nos filmes de Herzog é contaminada pela própria intervenção de todo aparato técnico do cinema e sua artificialidade na natureza. O interior de seus trabalhos mais fortes pulsam essa contradição e Herzog não usa de cautela nessa relação. E ele vai até o fim. O Sobrevivente não acrescenta um só côvado ao cinema de Herzog, mas o interessante é ver como ele domina essas obsessões em um aparato tão controlado, delimitado e cerceador como o de Hollywood. É a volta dele a um cinema de ficção, mas guarda semelhanças fundamentais com seus últimos trabalhos documentais – inclusive esta produção média (para os padrões de Hollywood, claro) é baseada em documentário realizado pelo próprio diretor.

O filme conta a história do soldado da Força Aérea Americana Dietler Dengler (Christian Bale, intenso e entregue absolutamente ao papel), que, em uma missão no Vietnã, cai em plena selva, vira prisioneiro de vietcongues e prepara uma fuga, considerada suicida por seus companheiros de cárcere. Herzog faz com este entrecho um tradicional filme B – talvez a única maneira de um visionário imponderado como ele conseguir um mínimo de liberdade, já que a produção é mais um caça-níqueis ao estilo das aventuras de Sidney J. Furie do que um blockbuster cheio de esmeros: efeitos especiais modestos, fotografia e cenografias sujas e a adoção irrestrita do ponto de vista do protagonista. Até por causa disso, algumas coisas podem soar um tanto quanto irresponsáveis, reducionistas e estereotipadas, como por exemplo, a caracterização dos vietcongues como bárbaros e selvagens. Só que não esqueçamos que o cineasta elege o ponto de vista do soldado Dengler, portanto, não há de se pedir recuo, “humanização” do inimigo (seja lá o que isso quer dizer) ou relativização do ponto de vista. Se o cineasta sempre nos joga no olho do furacão de uma situação extrema, sua fidelidade é ao seu protagonista que, lúcido ou louco, tem o seu aval.

E não só o seu aval de maneira cúmplice, porque como grande encenador, Herzog está mais para um algoz do que exatamente um companheiro de viagem. Por isso, o que interessa pra ele no fato do cara ser um soldado, é que ele sai de uma ordem e de um mundo em que, por exemplo, os filmes educativos de sobrevivência na selva são motivo de riso (como nas primeiras sequências), por ser uma representação por demais simplória, e em que a patente inspira  respeito e supõe autoridade/arbitrariedade – quando por exemplo, Dengler pede a um recruta que faça um bolso em suas botas. Dengler sai deste mundo controlado, hierárquico e fake, para um outro, no qual o fato de todos estarem sob risco de morte os torna absolutamente iguais – sejam eles soldados, vietcongues, serpentes, ou mesmo um cachorro. É uma adaptação de Dieter Dengler ao meio, não como um modo de colocá-lo em sintonia com a natureza, mas um tour de force da própria escalada de sobrevivência de tudo (absolutamente tudo) o que é vivo.

Se O Sobrevivente muitas vezes se perde, deixa o ritmo cair, exercita modalidades de crueldade com os personagens, é porque o diretor se afunda no filme e se perde junto com ele. Herzog é um tipo de diretor raro (e isso faz parte da lenda, em muito criada por ele mesmo), que tem em seus filmes um meio para se perder, ser tomado por eles. Tanto que, quando ele se atrela a uma pegada dramatúrgica de certo distanciamento (como em algumas cenas na prisão, mas precisamente as noites), parece que o filme anda em marcha lenta, parece que a própria narrativa fica algemada junto com os prisioneiros. Só que quando Dengler e os outros prisioneiros fogem, temos o que certamente são algumas das sequências mais fortes deste ano: parte dos prisioneiros (encabeçados pelo personagem Gene, de Jeremy Davis), ao saírem, não cumprem com a sua parte no plano de fuga e parecem enlouquecidos quando Dengler e Duane (Steve Zahn no papel de sua vida) os encontra. Um deles corre e some na selva e Gene, esquálido, esclerosado e com um par de botas roubado dos vietcongues, delira enquanto observa Dengler e Duane indo embora descalços. Para o que ficou (Gene): a loucura, e certamente a morte. Para os que foram (Dengler e Duane): talvez a loucura e a morte, sempre à espreita. Na selva, Dengler e Duane parecem dois animais acuados, descaracterizados, famélicos, sem outra alternativa a não ser encarar de frente duas das coisas que o filósofo Kierkergaard disse que o intelecto humano não pode compreender e aceitar: justamente a loucura e a morte. Como quem “desespera não pode morrer”, em última instância o objetivo é sobreviver.

Herzog tem aqui um momento siderado e amargo. Muitos considerarão o filme politicamente reacionário (vietcongue bom é o morto), mas como outros diretores tais como John Ford e John Milius, não interessa ao diretor alemão heróis exemplares e contraditórios, ou fazer de seu filme uma obra de investigação humanista. O que o move como artista (diferente de seu contemporâneo alemão Wim Wenders, e próximo a outro, Fassbinder) são os personagens planos, obsessivos e à beira do abismo. O Sobrevivente é feito dessa tragicidade e não há espaço para relativizar ponto de vista e acarinhar personagens. O que coloca Herzog em posição oposta do cinismo de um Lars Von Trier ou um Michel Haneke (outros grandes algozes), é que, nesse movimento de morte, ele vai até o fim – perfeitamente envolvido e contaminado.

Dezembro de 2007

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