ensaios - especial resnais
Quando as paredes falam
O espaço habitado por Alain Resnais
por Fábio Andrade

Casa, aba da pradaria, ó luz da tarde,
De súbito adquires uma face quase humana
Estás perto de nós, abraçando, abraçados.

A citação acima é de Rainer Maria Rilke, pinçada pelo filósofo e poeta francês Gaston Bachelard para o célebre A Poética do Espaço. O livro de Bachelard data de 1957, lançado dois anos antes de Alain Resnais inaugurar (ou reinaugurar) o cinema moderno com Hiroshima, Mon Amour. É claro que a proximidade das idéias de Bachelard com o cinema de Resnais diz respeito a mais do que influência direta: são, ambos, pensadores de um mesmo mundo (a França) em uma mesma época, partindo de um mesmo campo de circulação de idéias. Mais curioso, porém, é que a revisão da obra de Resnais, fora de seu contexto original, encontre maior ressonância no cinema contemporâneo pelo seu tratamento do espaço, do que pela repisada questão da memória. Sem minimizar seu impacto como escultor temporal, a grande constância da obra de Alain Resnais é a manipulação do espaço cênico (especialmente notável por sua crescente predileção pelas filmagens em estúdio) como potência de expressão para os personagens.

“A memória – coisa estranha! – não registra a duração concreta, a duração no sentido bergsoniano. Não podemos reviver as durações abolidas. Só podemos pensá-las, pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de qualquer espessura. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas”. (*)

O filme começa com um corpo coberto de cinzas. Ao fim, ela o chama de Hiroshima, e ele a chama de Nevers. Não se tornam, simplesmente, o acúmulo da memória-tempo: viram os lugares onde os fatos lembrados ocorreram. São tempo espalhado em fósseis pelo espaço. A equivalência entre personagem e ambiente é uma constante na obra de Resnais – de Noite e Nevoeiro a Medos Privados Em Lugares Públicos – e encontra continuação nos apartamentos que choram em Amores Expressos (ou no quarto-lembrança de 2046 – Os Segredos do Amor), de Wong Kar-wai, e O Buraco, de Tsai Ming-liang. Mais do que simples ambientação, o espaço, para Resnais, funciona como as canções em Amores Parisienses: é o terreno onde se expressa o indizível; onde grita o que a consciência cala. Se quisermos saber o que alguém tem a dizer, basta olharmos para seus móveis.

Ser é estar

Em Muriel ou O Tempo de um Retorno, Hélène habita um apartamento que funciona, também, como loja de antiguidades. “Reconheço você em todos os detalhes”, lhe diz Alphonse ao chegar. Hélène se cerca de pessoas e memórias como empilha as velhas mobílias. Sua história não é só a sua, e por isso é impossível apreendê-la de todo: a vida de Hélène é guardar as lembranças dos outros. Em um canto da sala, um simulacro de lareira usa uma lâmpada para transmitir a impressão visual de calor. “Há lugar para todo mundo”, diz ela, convidando Alphonse a ficar. Fisicamente, não parece haver. Seu lar é marcado pelo abrir e fechar de portas, em entradas e saídas tão constantes como as memórias alheias que viram, até serem compradas por outros, suas também. Até mesmo seu filho, Bernard, é agregado de um casamento passado de seu ex-marido. “Ele se parece contigo”,  diz Alphonse. “Acho que parecemos com aquilo que amamos”, responde Hélène.

No início de Noite e Nevoeiro, o texto de Jean Cayrol passa por prédios de uma variedade de estilos. Apesar das fachadas diferentes, todos eram usados como centros de extermínio. “O geógrafo, o etnógrafo podem descrever os mais variados tipos de habitação”, escreve Bachelard. “Sobre essa variedade, o fenomenólogo faz o esforço necessário para compreender o germe da felicidade central, segura, imediata. Encontrar a concha inicial em toda moradia, no próprio castelo - eis a tarefa básica do fenomenólogo”.

A casa, símbolo primeiro de proteção do ser, era transfigurada pelo nazismo como sítio de aniquilação. Ainda assim, não perdia sua capacidade inerente de estampar, em seu interior, as marcas das histórias que a habitaram. O teto perde sua dimensão protetora inicial e ganha marcas de dedos, arranhadas pelos judeus que tentavam fugir do envenenamento e da morte. Um quarto é, ao fim e ao cabo, um espaço vazio entre quadro paredes. Paredes que protegem quem está dentro do que está fora, mas que, subvertidas pela violência, aprisionam, em um espaço-ser outro, aquele que deseja sair. A ferida do nazismo é profunda por inverter a essência dos signos: montanhas de corpos e cabelos perdem a identidade em figuras abstratas; possíveis lares se tornam matadouros. Em Noite e Nevoeiro, Resnais preenche os prédios vazios com a potência atordoante das imagens explícitas de seus interiores passados. Há, ali, a necessidade de preencher vazios físicos, de devolver àqueles lugares uma história que lhes pertence. Habitar esses espaços de imagens é, sobretudo, uma questão política.

Já em Muriel ou O Tempo de um Retorno (foto), os fuzilados viram planos de prédios e placas com nomes das ruas. Quando Hélène lembra do bombardeio, lembra de Bernard sob o teto desabado. Quando conversa com Alphonse sobre a vida que poderiam ter, fala em nomes de cidades, em lugares outros que poderiam chamar de lar. Quando Bernard lembra da história de Muriel, sua fala em off é acompanhada de imagens de sua época na Argélia – que depois se revelam em projeção diegética. Ao contrário de Noite e Nevoeiro, as imagens não mostram nada do que é dito, mas apenas fragmentos aleatórios de sua vida estrangeira. Enquanto Noite e Nevoeiro precisava reabitar os lugares esvaziados pelo tempo, Muriel ou O Tempo de um Retorno foge da revelação explícita por reconhecer que as imagens já estão entranhadas naqueles lugares, que a história não evapora daquelas ruínas. Como ao final de Hiroshima, Mon Amour ou as cidades-encontros de O Ano Passado em Marienbad, Muriel se torna o espaço em que vivera. Muriel é a Argélia, e a Argélia é – ao menos para Bernard – Muriel. “Reconheço você em todos os detalhes”, parece dizer todo o filme. O desejo dos personagens é o de não reconhecer mais nada. De poder olhar para um prédio e ver apenas um prédio.

Espaços possíveis

Em Amores Parisienses, o tempo se dobra pelo espaço logo no primeiro plano: após ouvirmos uma guia turística falar junto às cartelas de apresentação, presenciamos um momento decisivo da Segunda Guerra Mundial. Esse salto temporal, único em todo o filme, vem retrabalhar um interesse antigo de Resnais: a maneira como o espaço sobrevive às pessoas, acumulando, em um mesmo ambiente, pedaços de vidas de diferentes períodos. É o mesmo raciocínio que norteia a construção de A Vida é um Romance (foto),filme em que três histórias de tempos e registros diferentes convivem em um mesmo lugar. No caso de Amores Parisiense, os fantasmas do passado são preenchidos pela imaginação de Camille – a tal guia turística que infla as lacunas de seus relacionamentos como preenche, com um passado presente, os espaços históricos. Em A Vida é um Romance a convivência é visível: uma das narrativas ocorreria no tempo presente, outra no passado, e outra na imaginação; mas, diegeticamente, ocorrem todas ao mesmo tempo. Comum a todas elas, só o espaço: um castelo-templo (“É arquitetura ou confeitaria?”, pergunta um dos personagens) onde as três histórias convivem. Em duas delas, o espaço é possibilidade de controle: o castelo é tanto sede de uma experiência alienante onde toda mobilidade é limitada, quanto uma escola que experimenta novas técnicas de educação infantil. O contraste, porém, está justamente na terceira estória: criando um ambiente de visualidade que evidencia as convenções, a narrativa imaginária infantil escorre, selvagem, para o subsolo do castelo.  

“Sua morada deseja os subterrâneos das fortalezas da lenda: por baixo de todas as praças-fortes, de todas as muralhas, de todos os fossos, misteriosos caminhos interligavam o centro do castelo com a floresta distante. O castelo plantado no alto da colina tinha raízes fasciculadas de subterrâneos. Que poder para uma simples casa, ser construída sobre um tufo de subterrâneos!”

Representar a imaginação sob a terra é, mais uma vez, evidência da aguda consciência de Alain Resnais de como construir o espaço de modo que ele fale pela narrativa. Em especial por o mundo subterrâneo ser, sobretudo, matéria bruta para o sonho – terra onde podem existir túneis que abrem portas nos troncos das árvores. Essa idéia de um espaço moldável é retomada com um elemento de cena que já aparecera em Hiroshima, Mon Amour e O Ano Passado em Marienbad: a maquete. Em A Vida é um Romance, seja com o anúncio da construção do castelo, ou na reunião de professores posta em crise com uma proposta de ensino pela manipulação de um simulacro de sociedade, a maquete torna a imaginação concreta pela reprodução em pequena escala do mundo vislumbrado. Ela traz para dentro da cena o raciocínio maior de Resnais sobre o espaço: a possibilidade de moldá-lo, de pegá-lo com as mãos e controlá-lo, para criar, com isso, mundos possíveis. Essa manipulação do espaço visual ganharia tratamentos diferentes em filmes seguintes, mas sempre se colocaria como questão central da encenação. Amor à Morte já indicaria um procedimento que se tornaria ainda mais gritante em Mélo: a transformação de um mesmo espaço pelo controle da luz.

“(...) veremos a imaginação construir ‘paredes’ com sombras impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção – ou, inversamente, tremer atrás de grossos muros, duvidar das mais sólidas muralhas. Em suma, na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através dos pensamentos e dos sonhos”.

Se em Amor à Morte os escuros ainda mantinham pés naturalistas (basta lembrar da tensa conversa dos rostos de Sabine Azéma e Pierre Arditi recortados na impenetrável escuridão de seu quarto), em Mélo, a ambientação teatral libera o constante rearranjo de recortes, fazendo vistas se perderem em janelas de pura luminosidade, e paredes surgirem onde antes só víamos escuridão. Nesse sentido, é exemplar o traveling que semicircula André Dussolier na sua longa fala inicial. Em um primeiro momento acreditamos que a quebra da mise-en-scène em tableau virá expor o teatro como artifício: ao cruzar o eixo, a câmera revelaria a quarta parede que – no caso do teatro – seriam as cadeiras do espectador. O fundo, porém, é escondido em escuridão. Por alguns minutos Resnais faz o espectador acreditar que a questão do filme seria promover um choque entre os registros do cinema e do teatro. Até que a escuridão se abranda e por trás dela aparece uma parede, de fato. Em uma simples mudança de luz, Resnais motiva um restabelecimento de relações com o espectador, deixando claro que a sua mise-en-scène funciona sempre em função dos personagens.

Em filmes posteriores, a reorganização espacial ganharia expressividade ainda mais concreta. Com Amores Parisienses, a mudança de lar deixa de ser interna e se expande para os atos: os personagens passam a buscar novos apartamentos. Não por acaso, esses personagens em trânsito são justamente aqueles que buscam corrigir, no espaço, suas questões sentimentais. Em Amores Parisiense, a obsessão por um apartamento com uma bela vista impede Odile (Sabine Azéma) de perceber a ruína de seu próprio lar. É preciso que, ao fim, ela perceba a possibilidade de um prédio ser construído e tapar sua janela, para assim olhar para dentro de casa. Em Medos Privados Em Lugares Públicos (foto), a janela cortada pela parede postiça, na primeira cena, inviabiliza o apartamento ao casal que luta contra a separação. Ela evidencia o que eles insistem não ver. Da mesma maneira, as divisórias de vidro da imobiliária – enquadradas de forma a sempre tornar esse espaço móvel, com dimensões difusas – determina o jogo de sedução entre Charlotte (novamente Azéma) e Thierry (André Dussolier). Apesar de paredes tão presentes, às personagens resta a possibilidade de atravessá-las. De, como fazem Charlotte e Lionel (Arditi), trazer a neve para dentro de casa.

“O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão da geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação”.

Habitantes possíveis

É no díptico Smoking/No Smoking que Alain Resnais levará ao extremo a mobilidade de seu espaço cênico. A começar, pelo uso de dois atores para representarem todos os personagens: Sabine Azéma e Pierre Arditi aparecem como corpos ocos, como casas ambulantes onde se hospedam os mais variados seres. Mais do que isso é, também, a própria dramaturgia um espaço-potência a ser ocupado por um sem número de personagens, situações e desdobrametos. Smoking/No Smoking é um filme sobre espaços a serem habitados.

Curiosamente, essa mobilidade é revelada em um número mínimo de cenários fixos, filmados em planos longos, com entradas e saídas de cenas demarcadas e construção que evidencia seu caráter artificial. Tudo em Smoking/No Smoking é a imagem de alguma coisa; tudo é representação. Os espaços aparecem, portanto, despidos de qualquer personalidade: todos os lugares por onde o filme transita são exteriores, abertos, arejados. Vemos fachadas de prédios – casas, cabanas, igrejas – mas esse espaço sempre aparece oco, pois revelar as particularidades seu interior seria limitar suas possibilidades enquanto espaço-potência. Tudo pode ser habitado por todos. Tudo é público.

O efeito dessa construção é extraordinário, pois aprofunda experiências de personagem-extracampo que Resnais já havia realizado em Mélo (Christiane - personagem de Fanny Ardant confinada ao extracampo em toda a primeira metade do filme, justamente por representar uma possibilidade de vida concreta que por ali só rondava) e voltaria a usar em Medos Privados Em Lugares Públicos (Arthur – interpretado sonoramente por Claude Rich, reservado a um quarto onde nunca entramos). Em Smoking/No Smoking, é comum ambos os atores entrarem em algum ambiente banido à câmera, e continuarem uma conversa que só ouvimos em off. Mantida do lado de fora, a câmera de Resnais enquadra uma de suas mais expressivas construções: uma casa falante.

É só em No Smoking, porém, que a equivalência entre sujeito e espaço se completa. Ao se confrontar com uma situação incontornável, Miles Coombes se tranca na pequena cabana no quintal dos Teasdale. “(...) a cabana revela-se como a raiz axial da função de habitar”, afirma Bachelar. “De despojamento em despojamento, ela nos dá acesso ao absoluto do refúgio”. O desejo de voltar-se para dentro, de retornar ao útero, ao nascimento do ser, toma Coombes pelo resto do filme. Assim como a personagem de Claude Rich em Je t’aime, je t’aime é, aos poucos, engolida pelo divã-útero dentro da máquina do tempo, Miles Coombes se torna a expressão física de seu próprio desejo. É tomado pela cabana. Tanto que, quando morre, o monumento que sua esposa pede que seja erguido em sua homenagem é uma réplica da cabana. É o ser que, ao fim do filme, se torna, de fato, espaço.

* Citações tiradas de A Poética do Espaço, de Gaston Bachelard.

Setembro de 2008


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