ensaios - especial resnais
O DNA da modernidade cinematográfica Cidadão
Kane e os primeiros Resnais por Paulo Santos
Lima Rosebud,
a bola de vidro, o trenó perdido. Hiroshima, os corpos amantes em brilho de chuva
radioativa e de extático suor, metais queimados e retorcidos. Mas um abismo separa
o trenó do que foi a vida do seu dono, Charles Foster Kane. Uma fenda do tamanho
da história do século 20 deixa larga a distância entre o coquetel de tampinhas
incineradas exposto no museu da cidade e o momento em que Hiroshima ardeu a milhões
de graus. Ninguém sabe o que foi rosebud, e alguém vai atrás do enigma.
A francesa visita museus e assiste a filmes para descobrir o que foi o ataque
nuclear a Hiroshima. O primeiro longa de Orson Welles vai a um ponto que Alain
Resnais retoma e segue avante em seu também primeiro filme de longa duração. Cidadão
Kane e Hiroshima Meu Amor são correspondentes, e respondem, em seqüência,
a uma busca que culmina com a certeza de que o que chega ao momento presente pode
remeter, mas jamais tocar plenamente o instante passado, ou melhor, reviver uma
vida que tinha tudo a ver com esses objetos que cruzam o tempo até chegar a nós.
Cidadão
Kane é a grande lição moderna, de revelação de um mundo aberto e arrebentado
à vida. É de onde partiram vários cineastas modernos. Assim sendo, antes mesmo
de Hiroshima Meu Amor, Resnais já prosseguia antes com exercícios cinematográficos
que buscavam por algo tal qual o investigador procurava o significado de “rosebud”.
Ensaia com uma câmera que vasculha pinturas para reproduzir as vidas dos artistas
em Van Gogh e Gauguin, ou o brutal genocídio planejado – e mecanizado
– na cidade de Guernica, pintado a traços cubistas por Picasso. Encontrar, talvez,
mas, sobretudo, reproduzir. Aquecimentos para o que viria depois com As Estátuas
Também Morrem, em que os objetos de arte africanos pairam nos museus europeus,
mas o povo que os confeccionou continua no total anonimato. O
que vestiam, pensavam, comiam e arquitetavam esses homens e mulheres de uma cultura
falecida e que nos deixaram esses objetos? As estátuas, enfim, aludem, instigam,
mas jamais darão a experiência daqueles que as fizeram. Sobretudo essas apresentadas
nesse formidável documentário de 1953, co-dirigido com Chris Marker. A experiência
que manufaturou essas estátuas está tão distante de nós quanto o horror que milhões
de judeus passaram nos campos de extermínio e que os arames farpados, guaritas
remetem apenas como formas e imagens de estéticas variadas. Parece inevitável
que o plano final que mostra a fumaça negra expelida pela chaminé da fogueira
que torra a madeira do trenó de Kane coincida com o negrume expelido nesses lugares
que mostraram o pior do homem, comentado no média-metragem Noite e Neblina
(1955). Em ambos os casos, faz-se cinzas da memória, claro,
mas sobretudo daquele instante – a vida das vítimas dos nazistas nos anos 30-40
e o momento em que desfrutamos da revelação do enigma, mas que logo será tirado
de nossos olhos. Welles, aqui, encontra o que Resnais comenta em seus filmes,
pois esses resquícios de longa duração, que atravessam a experiência que os fez,
parecem revelar a casca, a forma, mas não o miolo da vida (ou o intestino do homem,
no caso do Holocausto). Ainda
que haja fortificações, paredes, câmaras de extermínio, guaritas, arames farpados,
tudo isso são reproduções. Re-produções: ou seja, vemos esses objetos e, pela
forma deles, produzimos mentalmente uma idéia. O enigma continua. O investigador
de Cidadão Kane esclarece-nos que uma nenhuma palavra dá conta da vida
de um homem. Palavra, ou, para Resnais, matéria, resgata plenamente o que foi
vivido junto a ela. O filme de Welles nos dá a senha da charada, ainda que isso
só responda mais à estrutura narrativa do filme do que a nós. O que significa
na leitura, evidentemente, é um desalento. Circunavegar os
enigmas, nevoeiros e alucinações mentais é a rota do cinema de Resnais. Assim,
a memória jamais deixa de ser a bússola a ser consultada. Formalmente, isso diz
muito ao diretor francês e, bastante interessante, também ao primeiro longa de
Orson Welles, que jamais toca diretamente na memória. A memória exige um olhar
retrocedido, voltado, o que em termos narrativos faz urgir a necessidade do flashback,
que é uma presença marcante em Cidadão Kane, além de canal de abertura
pelos múltiplos olhares de quem narra os eventos passados – os flashbacks
funcionam como multi-narrações e pontos-de-vista (claro que caligrafados pelo
próprio Welles e, emaranhado, o próprio personagem de Kane, como fica claro no
relato feito pelo tutor do protagonista). Nos
filmes de Resnais, a distinção e a relação entre passado e presente dão em outra
chave – efetivamente mais moderna e a ver com o mundo pós-bomba atômica e holocausto.
Mais a ver com memória, que, sendo de foro interior, ultrapessoal, deixa às claras
as distorções factuais, fazendo-se uma força contra uma história positivista,
de fatos e números. Assim, a francesa de Hiroshima Meu Amor peleja por
“estar” na Hiroshima do momento da explosão da bomba, mas ela tem apenas a história
das enciclopédias e dos museus – a história que ficou para constar, para lembrar.
Mas lembrar o quê? No que a memória toca o presente? As
lembranças românticas de Hélène, em Muriel (1963), por exemplo, só a tiram
mais do mundo, como comprova a montagem fragmentada. A memória é morte, portanto,
até porque, se a memória é uma retenção da experiência, e esta já não existe desde
que se tornou passada, efetuada. A memória serve como atributo ao presente, e
não transporte do presente. Talvez para construir, como o faz o (suspeito) homem
que teima para a bela mulher de O Ano Passado em Marienbad (1961) que eles
se conheceram ano antes naqueles corredores, ou naquele jardim geométrico, naquele
lugar de ecos e espectros arquitetônicos. Ela não lembra, mas a penumbra torna
o eco de vozes bastante forte. E a memória é tão volátil que pode ser fabricada
e conduzida. Esse olhar para trás, buscar elementos fora
do momento, enfim, está em ambos os cinemas. Encontra-se apenas a morte. O do
primeiro Welles, no caso, é a tentativa, sobretudo, de buscar a peça que falta
ao quebra-cabeças da vida de um homem, revivê-lo – mas Kane já está morto, como
nos diz a introdução do filme. No cinema de Resnais, a morte também é uma presença,
pois os personagens que se voltam para trás saem de si próprios, do instante diegético,
saem da consciência presente. O enigma, aliás, não deixa de ser a morte da certeza,
da lógica e ciência do homem. É o invisível também, o que acaba por aludir a uma
idéia de morte da imagem. É aqui que encontramos a modernidade em Welles e Resnais.
Só um cinema moderno pode adulterar a captação do mundo “real” para mostrar o
que há além dele, ou sob ele, nas camadas mais profundas, uma imagem de psique
(ou psiquê?) da vida, daquilo que está a milhas da planície que nossos olhos alcançam
entre o acordar e o dormir. O
documentário O Canto do Estireno (1958) parte da forma para chegar à matéria
(aqui, citando a ótima definição que Luiz Carlos de Oliveira Jr. faz sobre como
trabalha o cinema de Resnais). Ou, busca pela origem das peças plásticas coloridas
e de formas tão inusitadas, de tigelas a pecinhas tipo Lego. Ao chegar ao petróleo,
que é a base de tudo, o narrador confessa, no entanto, desconhecer a origem deste
óleo. O petróleo, em sua origem desconhecida, quase bruxa, mistério das profundezas
da Terra, torna-se uma força etérea, uma idéia, uma projeção mental, talvez sombria,
sob forma inominável, cor desconhecida, algo incerto, confuso, fundido. É a tradução
intuitiva do medo. É, também, aparentada da bola com motivos
glaciais que Kane abandona em sua última centelha de vida ou os corpos que são
terreno de cinzas e de suor, carne viva e pele de cintilante morte, sexo e urânio,
ou dos corredores do hotel em Marienbad e aquele encontro que sabe-se lá aconteceu,
ou as identidades transitórias do militante político de A Guerra Acabou
(1966). É medo da morte, mais que a morte em si. Talvez isso justifique a memória,
que com sua escotilha de fuga leva-nos a uma segurança idealizada e mágica, livre
dos assombros do desconhecido ou do indescritível, da bomba derretedora de gentes
ao amor interrompido sob estanque tristonho. A forma...
e a fôrma O olhar moderno para um mundo jamais visto,
o do século 20, faz coincidir alguns procedimentos. Alguns deles são bastante
diretos, como os travellings utilizados em profusão oceânica por Resnais
justamente nesse seu intuito de busca e de transmitir uma instabilidade do mundo
espelhado pelos filmes. Ainda que a câmera mantenha elegante passeio, a duração
causa sensações estranhas, incômodos à beira do transtorno. Orson Welles usa muitos
planos-sequência, mas os travellings são raros neste seu filme de 1941.
A profundidade de campo, os elementos presentes no quadro, a mise-en-scène
que estes estabelecem dentro do campo são os vagalhões de instabilidade e liberdade
pulsante dos personagens. Até
aqui, o que há de confluência entre Resnais e Welles é a apreensão do espaço.
Mais do que estabelecer esse espaço como local, ou seja, como tabuleiro
por sobre o qual transitam os personagens, a própria arquitetura dos lugares cria
uma interconectividade com os seres que adicionam elementos sensoriais e ideais
à cena. O teto baixo que espreme os personagens wellesianos é uma versão
prévia e mais light do que é o apartamento cheio de móveis velhos e órfãos,
sem liga, da Hélène de Muriel (mulher sem liga com o seu mundo, a Bologne-du-Mer
assombrada pelo passado mas, altiva, olhando para a frente, para a modernização).
Xanadu, “a maior obra construída pelo homem” (por Charles Foster Kane) corresponde
aos vastos corredores do hotel de O Ano Passado em Marienbad. Em ambos,
ouvimos as vozes desdobrando-se pela extensão dos ladrinhos, das colunas, dos
quadros, das estátuas. O hotel parece ter roubado alguma das obras compradas pelo
magnata Kane, incluindo o pacote a voz over que atravessa a própria duração
dos planos. É aqui, certamente, o encontro mais curioso,
bizarro talvez, entre Cidadão Kane e alguns dos primeiros filmes de Alain
Resnais. Desobedecendo o mandamento clássico que pede sintonia e indicação de
onde está vindo a voz narradora, o maior gênio moderno norte-americano e um dos
também geniais cineastas modernos franceses descolam seus locutores do olhar de
suas câmeras. Welles, claro, ainda respeitando mais o princípio narrativo clássico,
dando imagem a quase todos os narradores (quase, uma vez que logo que Kane fenece,
um narrador “invade” o filme com o mesmo ímpeto que a estética do cinejornal toma
as rédeas do filme... e vai se misturando às procedimentos ficcionais ao longo
do informativo). Estes narradores criam instabilidades, fazem o filme retomar
momentos já apresentados antes. O que chama a atenção, contudo e justamente no
narrador deste cinejornal dentro do filme, é um timbre grave que estará em outros
tantos filmes que Orson Welles nos presenteou a posteriori. Um timbre que
cria um corpo sólido e duro, camada titânia que se impõe e cria dissonâncias com
as demais camadas narrativas. E em um tom irônico que cruzou toda a obra de Welles,
até culminar na obra-prima F for Fake (1974). Voz
que está, bem semelhante e recitando um texto em versos alexandrinos em igual
pegada irônica, em O Canto do Estireno. Ou em Noite e Neblina, o
que cria uma faísca mercúria, ao cutucar um assunto cuja sacralizacão servia bem
às omissões sobre um erro que era de todos nós, que tínhamos permitido a realização
do demônio humano. A
voz, enfim, é um parentesco próximo, uma sinalização que indica outras correspondências,
além de Cidadão Kane, inclusive, em pontes entre Mr. Arkadin (1955)
e A Guerra Acabou, por exemplo, na fragmentação que era uma intenção em
Resnais e se tornou uma expressão de resistência nos Welles cuja realização se
fazia em itinerância pelo mundo. A voz, em todo caso, atravessa os estilhaços,
sai da crosta de ruínas do mundo, cujas imagens são instáveis, sibilantes, gasosas,
incertas. Orson Welles e Alain Resnais usavam, com esses seus primeiros filmes,
a mesma língua para comentar o mundo. Falavam com imagens parecidas, de mesmo
sotaque estilístico, num vocabulário mais afinado para chegar perto do enigma
do homem. Ou da imagem cinematográfica. Setembro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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