Inquietos (Restless),
de Gus Van Sant (EUA, 2011)

por Pedro Henrique Ferreira

O último romance

É bem possível que Gus Van Sant seja, para além de suas referencialidades estéticas, um diretor cujo universo índie, de uma juventude que mergulha em um abismo de vida e morte, se aproxima mais especificamente do Nicholas Ray do princípio dos anos 50. Varrendo os longos planos de steady-cam emprestados de Bela Tarr (Gerry, Elefante ou Últimos Dias) ou o plasticismo e a armação narrativa por voz em off emprestadas de Wong Kar-wai (Paranoid Park), encontramos um vívido interesse por jovens abandonados e criminosos que lutam por vidas comuns à beira do penhasco. A semelhança das figuras dos filmes de Van Sant com, por exemplo, o James Dean de Juventude Transviada ou o Farley Granger de They Live by Night sugere alguma medida de filiação, ou ao menos atualização.

Em Inquietos, nos depararemos com figuras na eminência da morte, seja como um trauma passado ou uma inevitabilidade futura: Enoch (Henry Hopper) esteve morto por três minutos, e Annabel (Mia Wasikowska) sofre de câncer terminal e morrerá dentro de três meses. Os dois têm uma relação íntima com a morte ao ponto de terem a tornado um elemento presente em seus cotidianos de brincadeiras infantis: eles se conhecem “de penetra”, mas em vez de numa festa, num enterro; Enoch joga batalha naval com um amigo imaginário, Hiroshi (Ryo Kase), um ex-kamikaze que teria morrido na segunda-guerra mundial. O tom de Inquietos, que por vezes evoca um olhar infantil sobre o mundo ou um melodrama adolescente, não consegue embalar inteiramente numa perspectiva inocente porque, tal como, por exemplo, no universo de Hayao Miyazaki, logo se recorda que, por trás da magia da criança, a morte espreita e condena seus personagens. Diferentemente do tom melancólico de Ray, em Inquietos, esta consciência gera situações ao mesmo tempo idílicas e de um humor negro afável.

A vida leve é, portanto, tal qual em Além da Vida (Clint Eastwood), uma opção. Os dois personagens apostam (na maior parte do tempo sem medo) em um romance já fadado ao término. Esta escolha individual de seus personagens, que já se reconhecem meio-mortos, metaforiza os próprios percursos estéticos de Inquietos: criar um objeto artístico como algo unitário, sintético e supramente diegético nunca é um rumo natural, mas uma questão de escolha e um contrato de fé que exige coragem para se firmar. A morte, possivelmente pela primeira vez na obra de Gus Van Sant, não é, em hipótese alguma, objeto de mistério e atração. Pelo contrário, é algo a ser politicamente deixado de lado, “para os mortos”. O pacto de vida entre seus personagens é também o pacto da diegese que o autor, politicamente decidido, propõe a seu espectador: a ilusão cinematográfica não é uma ferramente da enganação que oculta a inevitabilidade da morte e a iminência do fim, mas, ao contrário, aquela que constrói a única verdade possível neste desolamento a priori, uma verdade que se sabe tão mais plena quanto mais se reconhece finita, que erige algo, mesmo que pequeno, onde ainda e sempre não há nada.

Encontramos, em Inquietos, uma crença ética no amor cotidiano como garantia desta experiência plena que se traduz por um conjunto de recursos clássicos. Numa certa rarefação do cinema de Gus Van Sant  (imposta, talvez, pela produtora do projeto-encomenda), é possível que, frente a Inquietos, nos encontremos diante de um âmago que dispensa ousadias ou estripulias e demanda a volta a um universo cinematográfico mais sintético/unitário e, sobretudo, simples. Isto, em realidade, não quer dizer naive. Em uma sequência auto-referencial semelhante à de Amor à Flor da Pele, uma das mais fortes do filme, Enoch e Annabel resolvem encenar a própria morte. Mas os meninos “quebram a diegese”, dizendo que tudo aquilo é muito drástico e ridículo. Esta será a alavanca para o primeiro distúrbio na relação dos dois. Ao contrário do filme de Wong Kar-wai, onde esta ruptura é uma espécie de revelação das situações subjetivas de seus personagens, em Inquietos ela não leva a nada que não o fim. O rompimento da mise en scène é também o rompimento deste pacto de vida. Enoch revela que inventou seu amigo imaginário, e que não haverá mesmo nada quando ela morrer. O amor e sua mise en scène, que talvez tenha sido por excelência a razão de fé do contrato do classicismo cinematográfico, necessita que ambos acreditem e mergulhem naquilo que lhes é mostrado, ainda que saibam que, por todos os cantos, há um vazio aterrorizante que lhes espreita.

Assim, o grande drama de Inquietos é justamente que Enoch aprenda a aceitar a morte daquilo que ama sem ter de, por isto, deixar de amar. A grande beleza deste “pequeno filme” é procurar voluntariamente, com retitude, sem temer as pieguices, a encenação mais limpa possível – ainda que venha a nascer de artifícios e recursos que, tal qual seus atores, já estão mortos por princípio. Reconhecendo a iminência de seu término, trata-se um pouco de uma busca por um novo classicismo. De algum lugar recôndito em Inquietos, ouvimos ecoar a máxima de Ray em No Silêncio da Noite: “Vivi por umas semanas enquanto ela me amava”.

Outubro de 2011

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