visita guiada
Utopia de cinema
por Eduardo Valente
Entre os dias 19 e 30 de junho passado, eu participei
de uma das mais surpreendentes experiências da minha curta (menos
curta do que eu gostaria de admitir) aventura pelo cinema brasileiro.
Neste período, foi realizado no Rio de Janeiro o curso intensivíssimo
de cinema que é uma das fases do projeto do Ministério da Cultura,
Revelando os Brasis. Do projeto, eu sabia o que é mais conhecido
de todo mundo: trata-se de um concurso onde são selecionadas 40
pessoas de todo o Brasil, todas elas residentes em municípios
com menos de vinte mil habitantes. Estas pessoas têm a chance
de realizar um curta-metragem em digital, geralmente enfocando
histórias que se passam nas suas próprias cidades.
Eu tinha ouvido falar de uma passagem destes 40
escolhidos pelo Rio, mas não sabia bem como funcionava até ter
sido convidado para ser um dos que ministravam aulas de roteiro
e direção cinematográfica aos alunos. Com minha ignorância sobre
o projeto se resumindo a isso, aceitei o convite, mesmo com dois
pés atrás (um pelo fato de achar que o projeto me cheirava a um
determinado populismo assistencialista; outro, mais egoísta, porque
ele seria realizado em plena Copa do Mundo, onde minha atividade
preferencial é ficar em casa vendo os jogos e as mesas-redondas
sobre estes). Não me arrependeria.
A
primeira boa surpresa foi na reunião do corpo docente, onde me
vi junto a pessoas que respeito bastante, como o diretor de fotografia
Mauro Pinheiro Jr. (foto acima – fotógrafo, entre outros, de Cinema,
aspirinas e urubus), o roteirista e diretor Paulo Halm, o
técnico de som Edwaldo Mayrink (foto ao lado), o fotógrafo Alex
Araripe, o montador Luiz Guimarães de Castro, a produtora Tetê
Mattos, entre outros. A segunda surpresa foi saber mais sobre
a base do projeto, desde a forma como se dá a seleção (baseada
em pequenos “causos”, contos, histórias que os que se inscrevem
mandam, muitas vezes, escritos a mão mesmo), sem qualquer necessidade
de um conhecimento prévio de cinema, até a maneira como
se estruturaria o trajeto dos projetos, entre curso no Rio e produção
nos locais de origem.
Depois, veio o receio de saber que teríamos entre nossos alunos
desde jovens mal entrados em seus vinte anos até senhoras sexagenárias
(como me comunicar com um público-alvo tão amplo?). E, finalmente,
o choque de ver a amplitude geográfica daquela lista de selecionados,
que englobava praticamente só lugares que eu nem sabia que existiam
– indo de Caturama (BA) a Santa Gertrudes (SP), passando por Saboeiro
(CE) ou Cambará do Sul (RS). Aquele choque de ignorância sobre
o próprio país, misturado com uma ansiedade de conhecer o que
teriam a trazer aquelas pessoas para este curso (professores de
colégio, funcionários públicos, médicos, estudantes, trabalhadores
rurais), me fez logo perceber que eu estava embarcando num processo
onde ia aprender tanto (ou mais) que ensinar.
O primeiro dia de aula dava um frio inegável na
barriga: quem seriam aqueles nomes na minha lista de alunos? Será
que eu e eles conseguiríamos atender às expectativas uns dos outros?
Que tipo de didática/aproximação fazer com alguém que não estava
ali para aprender uma profissão (o projeto tem uma clareza que
muito me agradou sobre sua função não ser assistencialista-profissionalizante),
com alguém que nunca ouvira falar sobre nenhum dos conceitos básicos
de linguagem cinematográfica que estruturam toda uma relação minha
com o cinema, e que tinham que sair do Rio de Janeiro em duas
semanas prontos a dirigirem e comandarem a produção de um curta
próprio?
Na
entrada da sala de aula, caem os primeiros (pré)conceitos da minha
parte: sobre a mesa do professor, dois gravadores de som em MP3
esperavam ansiosos pelas minhas palavras. Um equipamento simples
e moderno, mas que eu nem sonho em ter (para ser sincero, não
sabia que existia, pelo menos não para gravar aulas e afins):
só isso foi mais do que o suficiente para eu poder jogar fora
minhas concepções (esperanças?) de encontrar o “brasileiro puro”,
de ter ali um “mito do bom selvagem” revivido. Nada como uma pitadinha
de globalização para jogar na minha cara o tamanho da prepotência
metropolitana que eu carrego. Ajuste feito, alunos desmitificados,
era hora de perceber que aquela turma era como qualquer outra:
nenhuma generalização possível de ser feita, dez seres humanos
tão diferentes quanto suas procedências, e que a cada pré-concepção
confirmada quebravam outras dez ou vinte.
A partir dali vivi cinco dias dos mais prazerosos
que já tive (e jamais terei, tenho certeza) em uma sala de aula,
por um motivo bem simples: ao contrário dos estudantes universitários
ou secundaristas urbanos com que tive contato até hoje como professor,
eu tinha na minha frente um grupo de pessoas com um objetivo muito
claro, que fazia deles o grupo mais disposto a aprender, sugar
mesmo cada palavra dita. Não apenas por terem uma difícil missão
(tornarem-se “cineastas” em duas semanas, sem nunca terem pensado
nisso antes), nem por estarem vivendo uma experiência única nas
suas vidas; mas, principalmente, porque logo descobri que cada
um deles carregava consigo a responsabilidade de se sentir ali
representando as suas cidades. O que havia em jogo na minha frente
era muito mais que uma admiração tola entre interior e cidade
grande: o que havia era a clareza de um coletivo acostumado a
receber prontas, vindas de pessoas tão ignorantes quanto eu, todas
as imagens que consomem sobre o mundo (via TV e DVDs, principalmente,
já que a maioria quase total dos seus municípios não têm mais
cinema) – e que tinham ali a sua chance de falarem por si mesmas,
em termos de imagens e sons. E falarem sabendo que serão ouvidas
– porque os filmes têm exibição garantida no Canal Futura (que
exibe atualmente os do primeiro ano do projeto), em festivais
de cinema em todo o Brasil e no mundo (uma seleção do primeiro
ano está viajando a Europa).
O que eles aprenderam comigo, eu não sei – espero
que alguma coisa, mas só saberemos mesmo vendo os filmes deles,
logo logo. Eu aprendi muito - a começar, como o nome do
projeto já devia ter me feito desconfiar, sobre o Brasil: sua
dimensão real, suas faltas e impossibilidades, mas também suas
potências. Mas, acima de tudo, aprendi sobre o cinema: sobre a
força da linguagem das imagens em movimento, sobre o efeito que
exerce sobre pessoas tão diferentes, e sobre o maravilhamento
que cria ao ser descoberto de dentro para fora por quem sempre
o havia recebido de fora para dentro. Naqueles cinco dias de aulas
eu não tive como não me sentir reenergizado e apaixonado de novo
pelo cinema. E mal posso esperar para ver os filmes que meus alunos
vão fazer...
editoria@revistacinetica.com.br
|