in loco - especial É Tudo Verdade
A Revolução não Vai Passar na TV (The Revolution
Will Not Be Televised), de Kim Bartley e Donnacha O’Briain (Irlanda, 2003)
por Julio Bezerra (colaboração especial
para a Cinética)
Direto
do palácio
Filmado
e dirigido pelos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain, A
Revolução Não Vai Passar na TV apresenta os acontecimentos do golpe contra
o governo do presidente Hugo Chávez, em abril de 2002, na Venezuela. Bartley e
O’Brian estavam no país realizando, desde setembro de 2001, um documentário sobre
o presidente Chávez e o governo bolivariano quando, surpreendidos pelos momentos
de preparação e desencadeamento do golpe, puderam registrar, inclusive no interior
do Palácio Miraflores, seus instantes decisivos. O
documentário se divide, grosso modo, em duas partes. Na primeira delas, os cineastas
estão preocupados em contextualizar o momento político pelo qual passa a Venezuela
e nos deixam a impressão de um país divido em opostos. De um lado, um carismático
Chávez conversa com o povo, fala de seus antepassados e tenta se identificar com
uma tradição guerreira. De outro, somos levados a reuniões de classe média/alta
em que se acusa o presidente de insanidade e homossexualidade. A apresentação
destas partes faz algumas generalizações talvez desnecessárias, é extremamente
funcional e muito pouco crítica. Em um segundo momento, Bartley e O’Brian nos
mostram uma verdadeira cruzada na mídia empreendida pelos cinco canais de televisão
privada do país contra o governo de Chávez. A
Revolução Não Vai Passar na TV consegue revelar com propriedade a permanente
campanha de mentiras urdida pelos meios de comunicação contra um presidente eleito
democraticamente por uma esmagadora maioria. Mas
a grande virada do filme se dá no momento do golpe. Apesar de já sabermos do desfecho,
o documentário consegue imprimir um clima de vibrante incerteza. Passamos a olhar
para os acontecimentos no momento em que estes acontecimentos são vividos. Os
personagens interagem entre eles como se a câmera não estivesse ali. Essa sensação
confirma a impressão de fidelidade ao que acontece e que pode nos ser transmitida
pelos acontecimentos. Narrado dia a dia, o
que mais impressiona no filme é o acesso dado aos documentaristas: Bartley
e O’Brian filmam o tempo todo de dentro do palácio do Governo. Embora claramente
simpáticos aos chavistas, os realizadores não saem com eles. Permaneceram filmando
a instalação do novo governo. A
Revolução Não Vai Passar na TV é um documentário clássico, que agrupa fragmentos
do mundo em uma estrutura mais retórica ou argumentativa do que estética ou poética.
A montagem serve menos para estabelecer um ritmo ou um padrão formal, do que para
manter a continuidade de uma perspectiva ou argumento. A Revolução Não Vai Passar na TV depende de uma lógica transmitida
verbalmente e se dirige ao espectador diretamente com legendas ou com uma narração
em off. As imagens ilustram, esclarecem, evocam, ou contrapõem o que é
dito. A narração se apresenta como distinta das imagens que a acompanham. A voz
em off é associada à objetividade e à onisciência, se empenha em construir
uma sensação de credibilidade. Talvez
o aspecto mais interessante deste documentário seja a revelação da manipulação
dos canais de televisão comerciais sobre os responsáveis pelos assassinatos dos
manifestantes em 11 de abril de 2002. A Revolução Não Vai Passar na TV evidencia
a manipulação das imagens da manifestação feita de modo a culpar os chavistas
pelo massacre. Ao apresentar a edição completa da seqüência de imagens, Bartley
e O’Brian nos convidam a questionar as imagens, nos lembram que não há nada em
uma filmagem, interior a ela e a suas imagens, que determine radicalmente sua
qualidade documentária, ou uma autenticidade inquestionável em relação ao mundo.
Isto não é desenvolvido pelo
ou no filme, mas o que essa desconstrução do uso de imagens pelas TVs comerciais
sublinha é o fato de a relação entre documentário, telejornalismo e a realidade
passar sempre pela indução e pela condução de determinados sentidos, e pela construção
ou estabelecimento de variadas significações. Documentário e telejornalismo não
têm outra realidade que não aquela material da imagem no vídeo. A realidade que
pulsa no interior de filmes documentários e de reportagens, assim o faz através
de um número variado de elementos estéticos que foram negociados e aceitos ao
longo de suas tradições como marcas de tais gêneros. O documentário e o telejornalismo
estão mais sujeitos à crença do que à lógica. Em
geral, este tipo de documentário não desafia ou subverte as categorias que organizam
as informações transmitidas. O problema é que A Revolução Não Vai Passar na TV deveria
estar mais atento à possibilidade de cair na armadilha que o próprio filme diagnostica.
A reivindicação de veracidade deste documentário se ancora principalmente em uma
busca pela transparência e credibilidade de testemunho fiel dos acontecimentos.
Bartley e O’Brian parecem querer nos deixar a impressão de que a câmera apenas
registra a história diante dela, quando, seqüências antes, haviam despertado nosso
ceticismo em relação à filmagem e montagem das imagens. Assim, um espectador mais
crítico pode ter sérios problemas com uma seqüência de imagens de pequenas manifestações
pró Chávez logo após o golpe (montada para nos passar uma idéia de reprovação
generalizada à tomada do poder que as imagens não parecem ilustrar), deve também
questionar a escolha de alguns depoimentos de autoridades americanas para indicar
a presença dos EUA no golpe (algo que nunca é devidamente provado). Perguntas
que o filme não responde. Abril de 2008
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