Ricky (idem), de François
Ozon (França/Itália, 2009)
por Filipe Furtado
As
mutações do filme
Ricky não deveria funcionar.
São tantos elementos dispares trabalhando ao mesmo tempo, que o natural seria
o filme aos poucos se anular e afundar. Por isso não deixa de impressionar como,
à parte um ou outro pequeno deslize, o filme se equilibre com grande segurança.
Mas, no fundo, Ricky não deixa de ser um filme perfeito para o projeto
de cinema de François Ozon, sempre em busca de algum elemento a mais para transformar
um material à primeira vista surrado. Temos aqui, a princípio,
um típico filme realista francês: lá está a operária mãe solteira no trabalho,
na relação com a filha, no flerte com o possível novo namorado (um imigrante espanhol,
para reforçar a idéia de filme social). A câmera observadora segue estes personagens
de acordo com a cartilha do atual cinema realista francês com o olhar detalhista
que estamos já treinados a esperar. Há até ocasionais ecos de uma crueldade chabroliana
em alguns momentos deste primeiro ato. Porém os espectadores mais atentos podem
desconfiar que há algo de estranho no tom do filme: aos poucos se instaura um
clima sinistro e uma atmosfera de filme de terror parece ganhar contornos – um
pouco por conta da trilha sonora – sem que o filme abandone em nada o tom naturalista
imposto até ali. Quando
a protagonista dá a luz a um bebê “incomum”, Ricky dá o salto definitivo
para o cinema fantástico. A grande cartada de Ozon é que este mergulho no fantástico
em nada anula o filme que realizara até ali. Ricky passa a existir num
universo de fábula fantástica, mais para Burton do que Spielberg, já que o filme
nunca esconde que o espaço entre a fábula e o horror é pequeno. Percebemos logo
que o objetivo maior de Ozon aqui é mesmo realizar um filme de mutação, mas o
corpo que se transforma em Ricky na verdade não é humano, mas o do próprio filme.
Toda a forma quase metódica com que o filme lançara mão da trajetória recente
do cinema realista francês recente passa a fazer sentido quando este se transforma
naturalmente num filme fantástico. Não há choque no processo,
já que Ozon não se interessa por um curto circuito de elementos, mas simplesmente
por renovar um universo – no caso, o do cinema de arte francês e das formulas
surradas do filme realista para festivais (sem, no processo, deixar de entregar
um dos seus filmes mais acessíveis). Se é verdade que nem tudo no filme funciona
– ele é muito mais forte quando adere ao olhar da filha mais velha do que quando
se desloca para o da mãe – não deixa de ser um filme exemplar na obra de Ozon.
O grande ponto de equilíbrio dentro de uma busca constante justamente por desequilibrar
e renovar seu material. Setembro de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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