em processo
Drama, dublagem, Karim
por Felipe Bragança

“O filme ficou mais seco, menos denso e pesado do que eu pensava. Mas uma secura boa... Não dura. Verdadeira.” Acho que foi isso que eu disse a ele.

Rifa-me é o título de trabalho do novo filme de Karim Ainouz (Madame Satã), no qual trabalhei no roteiro e como diretor assistente – o que torna este texto uma curiosa mistura de “em processo” e “em primeira pessoa”. O título ainda deve mudar – está ele também em processo. Karim ainda está inquieto. “Não é esse o nome do filme, Felipe. Vamos encontrar outro.” Depois de um mês afastado dos caminhos da finalização, encontro com ele numa sala de dublagem no Rio de Janeiro – além de nós dois, lá estão o editor de som Waldyr Xavier, nossa Hermila Guedes e João Miguel (protagonistas do filme). Estúdio de dublagem a postos. Silêncio...

Vi o último corte do filme uma semana antes, depois de 5 meses de trabalho, por vezes intenso, por vezes interrompido entre a ladeira da Glória e Paris. Karim parece alegre com o resultado, com o caminho encontrado entre a fluidez e o impacto procurado. Uma manufatura de cinema em que não há mecânica pré-fabricada que se baste – o que se por vezes incomoda, dá trabalho dobrado, por outras instiga, emociona. Desde o trabalho de roteiro (lacunar, silencioso, explosivo em espasmos), da opção pelo uso apenas de locações e iluminação quase sempre diegética, chegando ao trabalho físico e hipnótico com os atores, esse segundo longa-metragem de Karim, já se avisava assim: uma composição sonora sutil, uma busca de uma engrenagem em prol de uma determinada sintonia que não se resolveria fácil, por mímese.

“Eu odeio trama, eu não quero trama”, brincava (sério) Karim nas reuniões de revisão do roteiro. E era curioso esse desafio: como equilibrar esse interesse pela instalação musical de um universo e o desdobramento narrativo que encanta nas miudezas clássicas de um melodrama, de um filme de personagens que atuem contra e em seu espaço. Como instalar o tempo e criar as irrupções dos eventos por dentro dele, sem negá-lo?

Na sala de dublagem, agora, Karim observa João Miguel e Hermila Guedes – fones nos ouvidos, roupas comuns. Voaram de Pernambuco e São Paulo para cá. Estão ali se vendo, finalmente, no filme – depois de meses de distância. Revisitando os espaços, se ouvindo e se vendo numa tela de TV.

Eu acompanho a dublagem de duas longas seqüências dramáticas: dós de peito em plano-sequência. Ela, nossa protagonista, nossa heroína de capa e espada de olhar sideral em encontro com ele, um amor de um passado próximo, de gestos contidos. Para cada uma das sequências, Karim procura efeitos diferentes ao lado de Waldyr Xavier (também responsável pela sonoridade de Madame Satã). Efeitos que estão entre a mais técnica das opções e a afinação delicada da sonoridade dos filmes. A dublagem, ali, não aparecendo como reprodução de palavras, mas como uma revisitação das cenas, dos tons, procurando, como numa engrenagem de orquestra, acertar os últimos detalhes na entonação, no ritmo e na textura das palavras a se deitar sobre o corte de imagem já pronto.

“Eu quero vocês cheios - sem texto e sem guia. Decorem as palavras e deixem o texto de lado. Quero vocês de volta, lembrando da cena, brincando com ela de novo. De verdade.”

Essa relação do Karim com o texto, com o seguir e se desviar, faz do processo de escrita das cenas algo além de um desovar palavras aos olhos dos atores. Há uma certa graça de alquimia, de insistência e erro onde a busca não está no texto certo ou na atuação correta, mas no choque aberto e direto entre o que lançamos a eles e o que eles devolvem. Fugindo da ditadura do roteiro declamatório espertinho ou, na outra ponta, do coloquialismo naturalista anti-dramatúrgico, Karim tateia as possibilidades de se fazer com que as palavras habitem o peito e o estômago dos atores, e não somente a boca, a fala descrita.

Durante o set, algumas belas cenas que agora aparecem silenciosas no filme ganharam densidade a partir de ensaios com textos prévios, ao pouco suprimidos. Assim como belos momentos de diálogo que vemos no filme, surgiram de soluções de roteiro quase emergenciais, escritas na coxia e nas coxas (literalmente), pensadas e criadas no calor do set, a partir do silêncio gestual dos atores que pediam palavras. O texto e o silêncio, a dramaturgia e o improviso corporal, dessa forma, não se repeliam nessa costura, pelo contrário: se inspiravam um no outro. O roteiro tinha antes a função de encantar, não tanto de “guiar”.

Mas, como (re)encontrar, então, sintonias de cena na frieza de uma sala de dublagem? Tudo tão diferente do olhar de vivência afetiva e física que Karim e Fátima Toledo levaram ao elenco na cidadezinha de Iguatu. Como voltar àquele estado com um vidro nos dividindo dos atores, cercados de paredes de camurça e microfones? Cabia ao filme o teletransporte. Cabia ao filme operar essa mágica.

De alguma forma, Hermila e João, ali, eram os primeiros e autênticos espectadores do filme, os mais privilegiados, os mais eriçados e os mais sensíveis: o desafio da instalação das cenas era conseguir, ali, na hora, retransportar os atores de volta àquele lugar, àquela textura.

Falar do que é densidade, do que é secura, do que é drama nesse cinema é um universo embrenhado. Algumas vezes, na escrita do roteiro ou na decupagem in loco, procurando referências, afetos comuns, sintonia, esse dilema vinha à tona: como encontrar o que nos encanta em cinemas aparentemente diversos como o de um Douglas Sirk ou de um Jia Zhang-ke? Como promover o encontro ente a engrenagem afetiva/dramatúrgica do melodrama e a contemplação hipnótica de um, genericamente falando, “certo cinema asiático” que nos interessa? Como ser espetacular e contido? Mágico e superficial?

Talvez não seja ainda o filme de manufatura leve, dinâmica, que Karim almejava. Ficamos longe de conseguir forçar o formato de produção para o cinema de baixíssimo custo e tempo dilatado de filmagem, como ele queria – “com uma equipe que coubesse numa kombi...”. Mas lutamos por um formato de encenação que apostasse em um mínimo de intervenção na dinâmica verdadeira da cidade, misturando pontuais figurantes contratados com moradores de passagem, voluntários emergenciais, tentando lidar com o espaço de maneira abismada mas familiar. Não foi fácil.

Para esse esforço de interação com o espaço, desenhamos uma semana de ensaios em que atores, equipe de som e fotografia iam às locações numa espécie de simulação, de ensaio de orquestra – um ensaio que servia para que os atores evoluíssem no espaço, que a fotografia mais “entendesse” a luz que nos cercava do que a “ditasse”, que a cenografia encontrasse as sutilezas da intervenção, que a produção aprendesse a controlar nossa “realidade” com o mínimo de força bruta. Ensaios gerais para todos:

O trabalho prévio e cauteloso com o diretor de arte Marcos Pedroso foi essencial nesse processo, desde a criação do colorido não simbolista do filme (“onde vermelho é só vermelho” – nas palavras de Pedroso) à escolha cuidadosa e demorada das locações, que misturavam opções visuais com a dinâmica de vida do lugar, a forma como os espaços e as pessoas que por eles circulavam, respondiam aos desejos do filme. Filmar em um mercado público sem fechá-lo completamente, ou num baile de forró completamente lotado por pessoas comuns, num posto de gasolina em funcionamento, jogando nossas atrizes ao espaço...

Esses desafios, que a equipe de produção do João Junior aceitou e enfrentou junto conosco (com um pouco de medo, um medo justo de que tudo desse errado, de que não se devia “reinventar a roda”) foram essenciais para tentar dar ao filme um sentido de vivência e criação. De alguma forma, o desafio era conseguir transformar Iguatu nesse mundo à parte, lugar em redoma de vidro vazada, como num território de circulação geométrica para o mundo, centro do universo, uma cidade cenográfica viva. (Como talvez o casarão habitado por Madame Satã na Lapa o tenha sido...)

De volta à sala de dublagem, nesse espaço frio de um estúdio no Humaitá, é impossível não estranhar a saudade daquele deserto urbano que era Iguatu. Daquela paisagem de vultos, de música alta, de perfume forte, de sol branco queimando a pele. Da doçura e da raiva que parece estar nas entre ruas da cidade e que tentamos colocar de alguma forma como fantasma do filme.

Olhar para esse cinema tão pensado, falado, digerido agora já em forma de filme inteiro (começo-meio-e-fim), é um misto de realização completa e de vazio absoluto. Dos últimos acertos de atmosfera, dessa obsessão que vem da cegueira de tanto se olhar o que se imagina: nosso filme está lá? Repito: Está lá? Uma dúvida distante e sempre presente, cheia de idéias escondidas. Deixar o filme em aberto até o momento da tela grande, do som composto, da luz sem volta da tela de cinema... É a única saída?

Hermila e João se emocionam. Hermila chora. Respira. “Gostei. Vamos de novo” – diz Karim, entre o riso e o nervosismo emocionado. Me despeço de Karim. Tenho que ir – coisas a escrever. Ele está quieto, com os olhos vidrados no texto da cena, me pede para escrever uma fala extra para o próximo dia de dublagem, para um pequeno off. Repito que estou indo, o rosto de Karim sem reação, um transe real, depois de mais uma leitura iluminada de Hermila. Um sorriso lá longe. É impressionante a rapidez e a densidade com que ela consegue voltar a um afeto. Os dois emocionados. “Tá tudo bem, Karim?” Tempo. Silêncio. Eu espero de pé, já com a mochila nas costas. “Tá... Eu só estou concentrado”.

Deixo Karim nessa concentração sujeita a explosões, sorriso no rosto. Uma forma doce e agressiva que ele leva às últimas conseqüências no set, nas entrelinhas do que ele sente diante da imagem que criamos. Um filme curto, um conto de fadas, um melodrama contemplativo, uma sintonia de um realismo sideral possível. Uma vontade grande de criar beleza, uma certa alegria raivosa, ou raiva alegre. Força de criação, de algum mergulho. “Qual o nome desse filme, Felipe??” Animação: Karim Ainouz e o filme, seguem juntos. Inseparáveis.

Até a tela grande.

Encontro realizado em Junho de 2006.

RIFA-ME (título provisório)
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Karim Aïnouz,
Montagem : Márcia Watzl
Fotografia : Alberto Bellezia
Som Direto : Aloysio Compasso, Rômulo Drumond, Renato Calassa e Leandro Lima.
Produção : Mauricio Andrade Ramos, Guilherme Coelho, Nathaniel Leclery e Mariana Ferraz.



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