in loco - cobertura dos festivais
O
Último Romance de Balzac, de Geraldo Sarno
(Brasil,
2010)
por Fábio Andrade
A
afirmação do mistério
Se em
seu filme anterior, Tudo Isso MeParece
um Sonho, Geraldo Sarno já empreendia uma jornada interessada
– mesmo que nublada e sem pulsação – pelo processo de criação
artística, em O Último Romance de Balzac ele é de fato
começo e fim, forma e conteúdo do filme. Não há, portanto, intenção
de questionar ou de verificar o quanto há de verdade ou de invenção
(pois, mesmo se não duvidamos de sua autenticidade, há um pouco
dos dois) no relato de Waldo Vieira de como Balzac teria lhe aparecido
e soprado, palavra a palavra, o livro em seu ouvido. Mediado pela
pesquisa acerca do livro de Waldo/Balzac feita por Osmar Ramos
Filho (essa sim uma investigação mais tradicional), o filme ouve
seus relatos apenas para afirmar o mistério do próprio ato criativo.
A cada nova "coincidência" entre o romance de Waldo
e a obra de Balzac, importa menos o quanto há de religioso ou
de charlatanismo no processo, e mais o quanto esse processo –
opaco e impenetrável – é sempre misterioso (daí o filme nunca
voltar a Waldo com as conclusões do professor Osmar para conferi-las,
ou para questioná-lo). Interessa, portanto, menos uma verdade
por trás do fato, e mais o fato em si: um filme feito a partir
de uma pesquisa, a partir de um livro que, mesmo que falso, contribui
na compreensão do objeto "verdadeiro".
O
que Geraldo Sarno faz – com uma vitalidade absolutamente contagiante
– é justamente emaranhar ainda mais esse espelhamento. O Último
Romance de Balzac se firma, dessa maneira, como um filme de
empréstimo, dedicado não só ao empilhamento de camadas, mas principalmente
à maneira como cada uma – mesmo quando exposta em plena falsidade
– é capaz de enriquecer as outras. O filme não questiona a autenticidade
de uma obra, mas sim o autêntico dentro do conceito de
obra de arte. Suas sequências inspiradas no cinema silencioso
satirizam o estilo da época, mas o fazem com índices muito claros
de anacronismo, de revelação da "mentira": a película
é trocada pelo vídeo, o formato de tela passa do 1.33:1 original
para o 1.85:1 moderno (introduzido no mercado somente em 1953).
Da mesma maneira, Rafael – personagem de A Pele de Onagro
supostamente inspirado no pintor Paul Potter e, por isso mesmo,
índice de "veracidade" essencial – tem sua aparência
completamente transformada na transposição do texto para a porção
silenciosa do filme de Sarno: enquanto no romance ele é loiro
e de cabelos cacheados, no filme ele é moreno, com uma barba fechada
que mal deixa ver seu rosto.
Com essas variações, Sarno faz um duplo processo:
deturpa a obra original para, com isso, afirmá-la. O espelhamento,
portanto, é mais como o daqueles brinquedos de parque de diversões,
onde espelhos de angulações e propriedades diferentes deformam
nossa imagem de inúmeras maneiras, e ainda assim nos reconhecemos.
A sensação ao se assistir O Último Romance de Balzac não
é muito diferente: a cada minuto nos vemos mais entretidos por
esse jogo de distorções, ao mesmo tempo em que criamos uma imagem
mais complexa e múltipla dessa obra primeira que Waldo Vieira,
o professor Osmar e o próprio Geraldo Sarno usam, todos, como
referência. O interesse de Sarno é justamente evidenciar o quanto
essas distorções não só são inerentes ao processo de criação e
entendimento, mas também o quanto são essenciais na conservação
do espírito original das obras. Isso fica claro na sequência em
que um pintor, convidado por Osmar Ramos Filho para recriar a
tela de Potter mencionada no romance psicografado, explica seu
processo de pastiche: há muito de cópia, de imitação, mas também
de leitura, compreensão e criação. Nesse sentido, O Último
Romance de Balzac é, de fato, um filme de absoluta imanência:
para a conservação plena do espírito, é sempre preciso moldar-lhe
um corpo ideal.
Setembro de 2010
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