in loco - cobertura do É Tudo Verdade
João Moreira Salles e Rithy Pahn: problemas
(reais ou "inventados") do realizador frente ao mundo por
Eduardo Valente
Santiago, de João
Moreira Salles (Brasil, 2007) - Filme de abertura Papel Não Embrulha
Brasas (Le papier ne peut envelopper la braise), de Rithy Pahn (França/Camboja,
2006) - O Estado das Coisas Como
reflexão acerca de procedimentos de filmagem, Santiago claramente está
instalado a partir de uma falsa questão, que é tratada o tempo todo pelo filme
como um problema autêntico e incontornável: a maneira de filmar o personagem Santiago
em 1992. Quando, no final do filme, João Moreira Salles localiza na sua forma
de enquadrar Santiago em 1992 um distanciamento de origem “social”, parece não
perceber que é esta sua conclusão que mais revela o verdadeiro mal-estar, algo
que se instala na pretensão de que havia um “Santiago puro” a ser “melhor visto”.
Esta problematização idealizada de um outro “Santiago” é, de fato, o que mais
rouba de Santiago a sua individualidade: parece considerá-lo um títere inofensivo,
como se um “mabusiano” Salles o controlasse completamente. Assim, por um lado,
a obediência cega de Santiago em alguns momentos; e, por outro, seu desejo de
se “colocar em cena” quase como um ator, tem negado seu potencial como fonte de
revelações extremamente pertinentes sobre este mesmo “personagem”.
Por
isso é que a edição que Salles faz quinze anos depois é muito mais “mabusiana”
que a filmagem de então – porque agora sim, morto, Santiago realmente nada tem
a adicionar ao filme que é feito e que leva o seu nome. O objeto, em 1992, subjetivava-se
através dos comandos do “mestre Joãozinho” – e, se pensamos que todo documentário
é nada mais do que o retrato do choque entre um realizador e seu objeto, o filme
que se realizava então era absolutamente fiel, senão a um “verdadeiro Santiago”
(uma entidade afinal inatingível a partir do momento em que tornado objeto de
uma filmagem), a um verdadeiro encontro entre João Moreira Salles e Santiago,
em 1992. De fato, tudo o mais que há de forte no filme já
estava lá, no material de 1992: por um lado, a relação de Santiago com a idéia
de morte, de decadência, de finitude; por outro, sua relação com a “nobreza”.
O denso filme que explorasse este tema a partir de um personagem tão fascinante
(e, de novo, todo seu fascínio já estava ali, na filmagem de 1992) até surge aqui
e ali, especialmente quando se reflete na própria vida de Salles (membro da nossa
“nobreza”; cercado pela morte de pai, mãe e da própria casa que é personagem do
filme). No entanto, este filme é deixado de lado pela obsessão com sua própria
linguagem, com o tom sempre auto-importante da sua reflexão sobre o filme que
deveria ou não ser feito. Santiago, o filme, é muito melhor quando deixa
Santiago falar, quando, simplesmente, reproduz as imagens de 1992. Quando começa
a ir e voltar nos retakes, e a abandonar de lado a fala de Santiago em
troca da sua própria, o filme parece um mágico que tenta nos distrair do principal
movendo muito as mãos. De novo, portanto, temos Santiago,
o homem e suas particularidades, sendo abandonados por um olhar que não consegue,
ainda, enxergá-lo – por mais que monte um discurso que parece indicar o contrário.
Assim, este filme de 2007 é, acima de tudo, uma exposição do mal-estar de classe
de Salles consigo mesmo, e praticamente prescinde de Santiago para existir. Santiago,
agora sim, está transformado num “boneco” da má consciência do diretor, e o que
parece pretender ser uma reflexão sobre procedimentos documentais, acaba sendo
muito mais uma sessão de psicanálise pública. Claro que, como sessão de psicanálise,
revela muito de seu “autor”, e daí flui seu maior interesse. Se, sobre Entreatos,
Ruy Gardnier disse ser um bom filme com o nome errado (segundo ele deveria se
chamar simplesmente Atos, já que não havia nada de “tempo morto” no que
se mostrava), podemos dizer que Santiago é um filme curioso, mas que, para
ser fiel a seu verdadeiro tema, deveria se chamar João Moreira Salles, um documentarista
da classe alta – e aqui não se deseja fazer nenhuma piada, apenas constatar
o que está na tela. * * * Curioso
mesmo foi assistir Papel não Embrulha Brasas no dia seguinte a ver Santiago.
Em Rithy Pahn nenhuma questão de culpa de classe, nenhum problema sobre a dinâmica
realizador-objeto: filmar uma realidade é, antes de tudo, questão de como colocá-la
em cena. Para contar a história de um grupo de prostitutas cambojanas retiradas
de seu ambiente natal camponês para a exploração urbana, Pahn não pensa duas vezes
em “encenar”, pelo contrário: boa parte da beleza de seu filme vem da óbvia “intervenção”
sobre a cena, criando jogos de continuidade de olhar incrivelmente poéticos na
montagem de “conversas” entre as prostitutas, numa construção de cena onde claramente
se lida com mais de um take, com reposicionamento de câmera, com repetição
e encenação. Pahn parece nos dizer que nenhum procedimento é “errado” em si,
mas sim os motivos pelos quais eles possam ser usados. Papel
não Embrulha Brasas é um filme que fascina acima de tudo por uma frontalidade
construída de maneira claramente teatral – mas cujo distanciamento de um “naturalismo”
não nos afasta nunca da realidade representada pelas próprias “atrizes” de suas
vidas. Pahn se aproxima bastante, em registro, de alguns filmes de Jean Rouch
– por mais que seu tom e seu tema não passem nem perto do cineasta francês. Há
uma humildade na postura de Pahn frente ao horror cambojano (que nunca é ahistórico
no seu cinema, eternamente referente ao Khmer Vermelho), a humildade de saber
que seu filme é mais importante e melhor do que ele mesmo. Ele quer atingir de
alguma forma aquelas pessoas em frente à sua câmera, e sabe que a melhor forma
de fazê-lo é torná-las parte do jogo da realização de um filme sobre elas mesmas
– sem precisar, com isso, tematizar constantemente este seu gesto. No
meio da simplicidade aparente de sua realização, Pahn tenta avançar sempre sobre
o que não é simples “retrato de classe” daquelas prostitutas, o que as torna indivíduos.
Nesse sentido, são especialmente tocantes as cenas onde elas aparecem cantando
(momentos de “abstração” que só fazem reforçar a dureza do cotidiano), colando
fotos de revista na parede do cortiço ou “brincando” de reencenar sua trajetória
como num tabuleiro de Jogo da Vida. Da mesma forma, não há espaço para simplismos,
e o “cafetão” é incorporado como mais um personagem da narrativa, passível como
qualquer uma delas de possuir uma subjetividade – sem com isso ter “perdoado”
nenhum dos seus erros ou impropriedades. Papel não Embrulha Brasas é mais
um filme que nos chega, muito pelas beiradas, deste que é um dos mais importantes
(e discretos) cineastas do mundo, hoje. Com Rithy Pahn descobrimos sempre o fascínio
pelo mundo e pela vida, que é tão mais acachapante pelo ambiente francamente horrorizante
onde seu cinema se insere. editoria@revistacinetica.com.br
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