in loco - cobertura dos festivais
Sangue
do Meu Sangue, de João
Canijo (Portugal, 2011)
por Pedro Henrique Ferreira
Painel
de um subúrbio
O grande mérito de Sangue do Meu Sangue é
que o diretor português José Canijo evita sistematicamente
as interpretações fáceis do universo retratado
– a periferia de uma grande cidade – sejam elas baseadas
numa visão sócio-econômica, que coloque ricos
e pobres numa relação de subordinação,
ou numa visão mais culturalista-antropológica, que
poria a sociedade e seus hábitos acima do indivíduo.
Em ambos, os homens estariam aprisionados - num caso, por constrições
materiais, e no outro, por constrições sócio-históricas.
O percurso de Canijo é um tanto mais interessante do que
estes dois aos quais o espectador já está acostumado.
Em Sangue do Meu Sangue, são justamente as figuras
humanas que estão no centro do palco, e o que a narrativa
fará é mais uma análise de suas opções
pessoais e escolhas independentes: seus gostos, suas vontades,
e suas decisões que não são resultado, mas
causa, daquilo que vivem.
Para
retratar o subúrbio de Padre Cruz, na periferia de Lisboa,
Canijo irá armar um painel de uma família, saltando
entre os dramas de cada membro dela, num mecanismo semelhante
ao de, por exemplo, As Coisas Simples da Vida ou Sonata
de Tóquio. Isto, porém, não será
feito pulando de um ponto-de-vista individual para outro. Não
é à toa que a câmera não costuma adentrar
os quartos, se limitando a procurar o objeto a ser filmado nas
brechas das portas ou das janelas. Pela soma destes acontecimentos,
com os quais o olhar de Canijo não se identifica completamente,
e dos quais resguarda alguma distância, Sangue do Meu
Sangue esboça o painel familiar: em diversas ocasiões,
vemos se desenrolarem no quadro múltiplas situações
e ações diferentes, uma desconectada da outra, ora
utilizando a profundidade de campo, ora molduras e ambientes diferentes
para apartá-los. Não procede, portanto, por pontos-de-vistas,
mas por painéis.
Se estes são recursos estéticos para apreender as diferentes facetas da periferia, ao mesmo tempo nos dizem algo sobre o espírito de Padre Cruz, um lugar sem muitos segredos ou interioridades, onde um evento faz interferência no outro e todos se conhecem – a namorada do policial é irmã do bandido cuja tia estudou no colégio com o traficante-chefe; a filha tem um caso com um homem que não sabe ser seu pai, pois a mãe também teve um caso com o mesmo homem anos atrás. Desta forma, tudo em Sangue do Meu Sangue acaba sendo dramático e novelesco. Mesmo que numa visada mais panorâmica do subúrbio, não se exclui também alguns dos preconceitos costumeiros pelos quais o ambiente é tomado. A marginalidade existe na figura do rapaz Joca (Rafael Moraes), e a gravidez desprevenida acontece com Cláudia (Cléia Almeida). Não é que Sangue do Meu Sangue fuja destas imagens ou tente justificá-las em processos ou forças que condenam os homens a elas. Em vez disto, ele as trata com uma certa naturalidade, como um rumo que estas figuras optaram tomar para suas próprias vidas. Uma escolha, mesmo que nem sempre esclarecida, é voluntariamente tomada por uns, e que, por outro lado, outros rejeitaram.
A
música popular também está presente na vida
daquelas pessoas. Tal qual Aquele Querido Mês de Agosto
(ou até no recente Canções de
Eduardo Coutinho), as canções populares e os implantes
de silicones têm de ser enraizados, encontrando o sentido
que eles têm para aquelas vidas. É por isto que Canijo
antecede as catárticas notas do karaokê com o desabafo
de Ivete (Anabela Moreira) sobre seu crasso desolamento. Contextualizada,
a breguice encontra algo de belo. No interessantíssimo
universo de Canijo – um em que a fraternidade está
acima de tudo – há espaço para que o bandido
e o segurança dividam a mesma mesa e troquem tapinhas inofensivos.
E a única diferença que existe no temerário
e violento traficante, capaz de estuprar uma mulher que se ofereceu
de graça para ele na noite anterior, é sua obstinada
solidão, justamente sua impossibilidade de aceitar amigos
e se engraçar com os hits do karaokê.
Novembro de 2011
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