Sangue
Negro (There Will Be Blood), de Paul Thomas Anderson (EUA, 2007) por
Fábio Andrade Uma
impressionante alegoria sobre coisa nenhuma
Sangue
Negro, a adaptação de Paul Thomas Anderson para o romance Oil!,
de Upton Sinclair, leva o cinema de Anderson a limites curiosos. Em primeiro lugar,
por uma radicalização da mudança de intenções que o diretor iniciou com Embriagado
de Amor: se Magnólia e Booggie Nights são filmes centrados
em narrativas, nas quais a condução do espectador se dá pelo desenrolar das situações,
seus dois últimos filmes desviam o olhar do diretor para a intensificação da criação
de universos, baseada quase exclusivamente no olhar de um personagem. Em Embriagado
de Amor, somos levados às cores contrastantes (lembremos das vinhetas caleidoscópicas
que cortam o branco predominante), à lógica excêntrica de Barry Egan, à sua estranha
construção de mundo que fazia cada cômodo parecer um quarto de hospital. Saímos
da mesa onde Anderson nos acomoda nos filmes anteriores, ao lado de Scorsese e
Altman (embora Kubrick permaneça presente), e recebemos a companhia de David Lynch.
De diversas maneiras, o processo de destaque iniciado em
Embriagados de Amor, seis anos atrás, permanece em Sangue Negro.
O curioso dessa aproximação é o mais óbvio dos muitos paradoxos que fazem desse
novo trabalho algo tão curioso. Em primeiro lugar, porque o interesse pelo micro
– a reprodução do universo enegrecido que só os olhos secos por petróleo de Daniel
Plainview (Daniel Day-Lewis) poderiam enxergar – opõe-se à escala orgulhosamente
grandiosa que Anderson adota para o seu filme. À primeira vista, nada mais lógico:
como diz seu sobrenome, Plainview é um homem macro. Seus olhos são capazes de
travellings e panorâmicas (diria até de tomadas aéreas), e sua relação
com o espaço é essencialmente horizontal. Anderson
condensa seu olhar como em um kammerspiel. O foco da ação e a amplidão
do universo que abarca parecem um contra-senso, embora esse contra-senso sustente
muito do interesse pelo filme, e as tintas usadas para contornar seus personagens
se tornam inevitavelmente alegóricas. Estamos diante de um confronto entre duas
forças-motores da sociedade norte-americana: de um lado, temos Daniel Plainview,
o caçador de petróleo. Do outro, o jovem Eli Sunday (Paul Dano), filho do dono
da propriedade cobiçada por Plainview, que vê na extração de petróleo a possibilidade
de ganhar dinheiro suficiente para construir a primeira igreja da ordem na qual
é pregador. Tanto Plainview, o homem dos negócios do petróleo, quanto Sunday,
o homem dos negócios da fé, são sobrenomes criados pelo diretor (no romance de
Sinclair eles seriam J. Arnold Ross e Eli Watkins, respectivamente), que provocam
um claro antagonismo conceitual. Um é horizontal, o outro, vertical. Um confia
apenas na concretude da visão, o outro, no invisível. Um é trabalho, o outro é
o dia de descanso. O grande problema de Sangue Negro
é que, embora Paul Thomas Anderson perceba e intensifique esse conflito, ele parece
não saber muito bem como desenvolvê-lo. Se os detratores de Anderson apontam em
seu cinema uma forte religiosidade (que de fato existe), Sangue Negro talvez
seja a antítese disso: não existe ordem em seu mundo para além da ganância. Sem
seus alicerces religiosos, Anderson parece não encontrar outras referências, outras
questões que guiem a sua fé pelo filme. Sangue Negro perde a força, construída
pelo talento de Paul Thomas Anderson tão habilmente nos dois primeiros terços,
e avança por uma explosão de sentidos, assim como fazem os irmãos Coen no terço
final de Onde os Fracos Não Têm Vez, com a diferença que esses sentidos
excessivos, aqui, parecem apenas fruto de um olhar confuso sobre a própria obra.
Por
mais que Anderson tente fugir da ordem religiosa que norteava seus filmes passados,
sua relação com os personagens não muda. Com a simples mudança de posicionamento
do diretor, Sangue Negro sai de kammerspiel para alegoria sobre
sabe-se lá o quê. Pois se o filme é apenas um duelo entre dois empreendedores
sem escrúpulos (como advoga Anderson), por que intensificar tanto os contrastes?
Se Plainview é apenas um demônio, para que serve o curto flashback de
felicidade ao lado do “filho”, mesmo após deixar claro que o garoto era apenas
um escudo de moralidade que ajudava nos negócios? Saímos sem saber responder essas
perguntas, mas com a estranha impressão de que aquela dúvida não deveria estar
ali. Sangue Negro faz pensar nos Coen em outro
sentido: assim como em Onde Os Fracos Não Têm Vez, o filme de Paul Thomas
Anderson resiste à sua confusão conceitual (que é bem mais intensa e incômoda
aqui do que em seu concorrente em indicações ao Oscar) com uma apurada construção
de cena. Sobram, no filme, as impressionantes seqüências do prólogo; a construção
de atmosfera de horror sugerida muito mais pela combinação de dollies
com a trilha excepcional de Jonny Greenwood do que por ações; a expansão da paisagem
à Lições da Escuridão, de Herzog, proporcionada pelo belo uso do scope
e pela aspereza de chumbos da fotografia de Robert Elswit; uma química preciosa
muitas vezes conquistada entre Day-Lewis e Dano (a cena da conversão, por exemplo,
indica caminhos que o filme parece não se interessar em explorar). Momentos impressionantes
que, se não compensam o mergulho desgovernado que é a meia hora final de projeção,
nos fazem lamentar que Paul Thomas Anderson não tenha encontrado em Sangue
Negro o filme que gostaria de fazer. Fevereiro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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