in loco - cobertura dos festivais

Santos Dumont: Pré-Cineasta?,
de Carlos Adriano
(Brasil, 2010)
por Eduardo Valente

Filme de amor

Se podemos dizer que Santos Dumont: Pré-Cineasta? é um filme de investigação, é preciso entender esse termo acima de tudo como um acúmulo de pistas, sem nenhuma possibilidade, ou, de fato, interesse nem necessidade, por conclusões. O termo “pistas” parece particularmente apropriado porque nos remete de maneira bastante física à idéia de rastros – e rastros sempre foram a principal obsessão do cinema de Carlos Adriano, que aqui chega ao longa após uma série de curtas ao longo dos últimos quase 20 anos. De fato, Carlos Adriano nos coloca como espectadores deste filme em posição absolutamente semelhante àquela que é mencionada por uma de suas entrevistadas, quando relembra o momento em que se viu frente a uma mesa tomada pelos resquícios do acerto de Santos Dumont: a partir do conjunto destes “fósseis audiovisuais” que o diretor nos mostra, nosso trabalho é o de tentar encontrar os pontos que conectam aqueles tempos distintos, aqueles discursos diversos, mas acima de tudo aquelas imagens.

É verdade também que, de todos os filmes do diretor, este de longe é o mais “palatável” a um espectador menos aventureiro, porque nos depoimentos de vários especialistas em história do cinema, ou na história de Santos Dumont, Carlos Adriano vai plantando uma série de linhas que lhe interessa esticar (a imagem do novelo parece bastante útil aqui). A cada espectador parece ser dada a possibilidade de escolher a qualquer momento uma delas, e se aprofundar por si mesmo nela: seja a questão do found footage como elemento de linguagem, seja a aproximação histórico-cronológica entre o surgimento do cinema e o do avião, seja a dimensão histórica e sua relação com a ontologia da imagem cinematográfica... E se um olhar apressado poderia até ver algum didatismo na maneira como estas falas se relacionam com o material que o filme explora, parece claro que nada do que é dito nem explica nem muito menos finaliza ou conclui nada em torno de qualquer destes temas. As vozes dos entrevistados parecem apenas mais um material dentro deste acúmulo de fontes, de registros, e muito mais servem a permitir derivas da parte do espectador do que de fato dirigi-lo por um só caminho.

Nesse sentido, termina sendo mais do que adequado o fato de que a frase emitida por um dos entrevistados que parece realmente servir como uma declaração de interesses do filme surja da boca do entrevistado menos “didático” de todos – o cineasta Ken Jacobs. Jacobs fala por duas vezes da sua relação com as imagens do primeiro cinema, deste material audiovisual que nos remete a todo um outro tempo (em vários sentidos), como uma de paixão, antes de qualquer coisa. E é esta paixão que sempre moveu o cinema de Carlos Adriano, que para alguns poderia soar frio e formalista, mas que no fundo sempre teve acima de tudo este componente tão bem representado nas palavras e sentimento de Jacobs. Desde os 18 históricos (por vários motivos) minutos do seu curta Remanescência, que giravam em torno de apenas 11 fotogramas de filme (e que surgem rapidamente na tela neste novo filme), o cinema de Carlos Adriano parece sempre profundamente crente (e fé é palavra que também é ouvida aqui em Santos Dumont) na força intrínseca das imagens em movimento e no seu poder sobrenatural de capturar, congelar e libertar o mundo. Havia em todos os seus filmes um sentimento quase palpável de um diretor que, por detrás daquelas imagens e sons nos dizia: “aqui está o mistério, vocês não vêem?”

Por isso, mesmo com sua aparência mais “informativa” dentro da carreira do cineasta, podemos afirmar que Santos Dumont é o filme mais pessoal que Carlos Adriano já fez – talvez um dos mais pessoais já feitos na história do cinema. E isso está na tela quase ao longo de toda a duração do filme, com a recorrente imagem de um homem que fotografa a própria câmera do diretor. Esse homem, para quem conheça a história recente do cinema brasileiro, pode ser identificado como Bernardo Vorobow, cineasta, pesquisador, parceiro de trabalho e companheiro de vida de Carlos Adriano. Sua presença “assombra” Santos Dumont – dando origem à sua imagem mais marcante, quando, ao descer no elevador da Torre Eiffel, o filme ralenta a imagem toda vez que os olhos de Vorobow surgem impressos nos reflexos do vidro. Há no uso que o filme faz das imagens dele um dos mais pungentes de uso do cinema para homenagear, perpetuar, e afinal, lamentar a perda de alguém (Vorobow faleceu há poucos meses). É, como diz a teórica Nicole Brenez no filme, a natureza melancólica do cinema em seu maior grau.

Este curto-circuito entre micro e macro Histórias e entre o passado remoto e o que recém se foi, que está presente no gesto de Carlos Adriano ao, de alguma forma, igualar um mínimo momento de seu companheiro a um registro de um dos bustos mais conhecidos de nossa história, é de uma autenticidade tocante, que em nenhum momento registra o menor grau de arrogância ou umbiguismo, mas somente a encarnação em filme da crença de alguém para quem a relação com a vida e com o cinema parece se igualar num mesmo onipresente sentimento de amor sem limites.

Outubro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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