nas locadoras
Saraband (Saraband),
de Ingmar Bergman (Suécia, 2004)
por Leonardo Mecchi
Saraband, ou como filmar o infilmável
Mais do que para realizar uma continuação de Cenas
de um Casamento, Ingmar Bergman parece ter retornado a Marianne
e Johan (Liv Ullmann e Erland Josephson, nos mesmos papéis que
criaram três décadas atrás) como quem, ao final da vida, busca
reencontrar velhos amigos, pois somente eles poderiam compreender
e compartilhar as angústias que o assolam. Não por acaso, o filme
inicia-se com Marianne diante de uma mesa repleta de fotos – numa
tentativa (também do diretor?) de ordenar e reavaliar memórias
do passado, buscando nos caminhos já trilhados uma indicação do
que, nesse momento de crepúsculo, ainda está por vir.
Esse prólogo (assim como o epílogo), com Marianne
dirigindo-se diretamente para a câmera, desvela a estrutura quase
teatral do filme, e os dez capítulos numerados e com títulos introdutórios
nos lembram que estamos diante de uma narrativa auto-consciente
e com certo grau de reflexividade.
Tais procedimentos de distanciamento do espectador, entretanto,
anulam-se diante da intensidade dramática atingida através de
atuações impecáveis e diálogos que parecem perscrutar os recôncavos
mais íntimos da alma humana. Impressiona no diretor sueco a capacidade
de criar, com o mínimo de recursos, dramas contundentes, verdadeiros
ensaios filosóficos sobre os grandes dilemas humanos (a finitude
da vida, o absurdo da existência, a impossibilidade do amor, o
encontro sempre conflituoso com o outro).
Embora
haja um pequeno acerto de contas entre os dois personagens de
Cenas de um Casamento, a maior parte da trama se desenvolve
de fato na relação de Johan com seu filho Herik, e deste com sua
filha Karin. Essa relação conflituosa entre pais e filhos atinge
todos os personagens: a ausência de contato entre Marianne e suas
duas filhas, a relação repleta de ódio e rancores de Johan e Herik,
a afeição asfixiante e castradora de Herik por sua filha Karin.
Um constante conflito de gerações, mas não entre o moderno e o
antigo, e sim entre egos, desejos e necessidades. Nessa cadeia
de conflitos, Marianne, como nossa anfitriã, permanece um pouco
à parte, ouvindo e testemunhando os conflitos morais daqueles
ao seu redor, lembrando-nos de certo modo a misteriosa atriz muda
de Persona (também interpretada por Ullmann).
Há na verdade um quinto personagem que, como a
Rebecca de Hitchcock, perpassa todo o filme, impondo-se como modelo
e ideal inatingível a todos os demais: Anna, a falecida esposa
de Herik, que conhecemos – com seu misterioso sorriso de Monalisa
– apenas através de um retrato. Anna representa o sagrado, a pureza
de um amor irrestrito (amor esse que transcende o humano, pois
dedicado a alguém que teoricamente não o merece), conceitos que,
no cinema de Bergman, são incompatíveis com o mundo dos homens
e só podem existir através da ausência. Daí a morte de Anna ser
um fardo pesado demais e se impor como presença constante sobre
o destino dos demais personagens. Como nos diz quase explicitamente
Johan, ser privado da presença de Anna é como ser esquecido por
Deus.
Saraband
segue a estrutura da dança homônima do século XVII:
seus quatro personagens revezam-se em cena, sempre aos pares, em
encontros distintos ao longo de seus dez capítulos. Temos apenas
quatro atores, alguns poucos cenários, uma fotografia discreta
e uma câmera de poucos movimentos, mas nas mãos austeras
de Bergman isso resulta em uma obra dilacerante que, ao expor
seus personagens ao patético da condição humana diante da grandeza
e complexidade da vida (e da proximidade da morte), faz o mesmo
com o espectador, sem com isso cair num niilismo auto-complacente.
"Sarabande" é
também o nome de um movimento musical - um dos mais belos, profundos,
melancólicos e sublimes da música clássica, e é aqui que a comparação
com o filme de
Bergman se faz mais justa. Pois,
os questionamentos da obra, assim como sua linguagem e mise-en-scène,
parecem de certo modo antiquados em seu humanismo, diante da modernidade
agnóstica em que vivemos. Com isso, para além de se tratar do
último filme de Bergman (como já afirmou o próprio diretor), Saraband
se coloca, talvez, como o último exemplar de um certo tipo
de cinema.
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