in loco - cobertura do É Tudo Verdade

Segredos da Tribo, de José Padilha (Brasil, 2010)
por Cléber Eduardo

O gozo do mal

Há filmes sobre o mal e há filmes do mal. Segredos da Tribo é uma coisa e outra. Um documentário mau, para falar às claras. O mal é denunciado por uma elite de antropólogos, e detectado nessa mesma elite por esses mesmos antropólogos (franceses e americanos). Uns atacam os procedimentos de outros na convivência com índios ianomâmis na parte venezuelana da Amazônia. Há acusações de pedofilia hetero e homo, de usos de índios como cobaias e de manipulação dos dados levantados. Cientistas são jogados na latrina, a antropologia é demonizada e os índios fazem papel de vítimas. Não importa tanto se um deles fala com pragmatismo e rastros de complexidade sobre os efeitos positivos e os benefícios materiais da presença de pesquisadores na aldeia. Importa apenas para o documentário que, quando entre ianomâmis, os antropólogos encarnam o Mal.

Por expor o lado funesto, nefasto e perverso de cientistas específicos, por meio de fragmentos sucessivos de entrevistas dos próprios (como em um programa de TV de quinta linha), Segredos da Tribo coloca-se como juiz do Bem. É o mal. E não há nenhum reducionismo nessa definição. Porque o mal reside na privação da inteligibilidade e na decisão de jogar a razão na privada. A teórica alemã Hannah Arendt lida com essa questão em perspectiva política, histórica e relacional (especialmente em “As Origens do Totalitatismo” e “Eichmann em Jerusalém”), vendo o mal como fruto do vazio do pensamento, de posições padronizadas e da banalização da crítica.  Segredos da Tribo é esse vazio. O mal, sua conseqüência. A crítica, seu fora de campo.

Porque ao construir seu discurso pelos discursos dos entrevistados, ao dar a arma para acusadores e acusados se alvejarem e trocarem de lugar nesse tribunal regido com espírito de Leão Lobo+Datena, o documentário restringe-se ao impacto dos relatos. Abre mão de uma montagem propiciadora de discussão, que ponha os fatos em contextos e em sua complexidade, em nome de uma delação generalizada, com posicionamento da enunciação por sua omissão. Quando evidencia sua postura, puxando a descarga para jogar qualquer debate no esgoto, Segredos da Tribo assume seu cinismo, regozijando por ter material direcionado ao escândalo. A começar pelo título, que, ao relacionar a ciência a uma tribo, associa cientistas a “selvagens”, igualando-os, pejorativamente, aos índios ali defendidos. A falta de capacidade intelectual de alguns diretores só não é mais nociva porque parte deles é medíocre demais como “cineasta”.

Documentário, como o cinema, a arte, o amor e a vida, é questão de “como”. E o método empregado por José Padilha, diretor de filmes esforçados em ver o mal em tudo e o bem apenas em suas ações cinematográficas (Ônibus 174, Tropa de Elite, Garapa), é o do orgasmo diante do mau odor. Desde o primeiro plano, de um índio atacando os antropólogos, a seta nos indica: vejam como a pureza dos índios foi corrompida pelos homens do conhecimento. Como todos se atacam, ninguém presta e, quando falam de suas pesquisas, não há crédito possível, nenhuma verdadeira polêmica viável, porque ninguém vale nada. Essa defesa da pureza, no lugar de um questionamento crítico sobre a antropologia participativa e dialógica, alimenta o esvaziamento do conhecimento e do pensamento para fazer o elogio do dedo em riste. Procura apenas a ênfase, o espetáculo do mal, a guerra de vaidades. Não se trata de blindar os antropólogos de uma crítica contundente; nem de interditar ataques no documentário. Se os denunciados merecem a denúncia, Segredos da Tribo coloca-se abaixo deles. Na fossa. E por lá pode ficar.

Abril de 2010

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