ensaio
Os Sertões (Árido, Máquina e Aspirinas)
por Kleber Mendonça Filho

Em pouco mais de seis meses, foram lançadas três visões extremamente pessoais do interior nordestino, em três filmes loucamente diferentes entre si, de três diretores pernambucanos. Em ordem de lançamento: Cinemas Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, A Máquina, de João Falcão, e, por último, Árido Movie, de Lírio Ferreira. Para a temporada 2006/2007, mais duas revisões do interior virão em Deserto Feliz e Baixio das Bestas. O primeiro é dirigido pelo paraibano radicado no Recife, Paulo Caldas, parceiro de Lírio na direção de Baile Perfumado, filme que remixou ainda um outro nordeste, dez anos atrás. O segundo, de Cláudio Assis, que estreou urbano com Amarelo Manga (2002), mas agora prepara revisão da Zona da Mata.

Os três filmes lançados recentemente podem ser vistos como viagens para a mítica e misteriosa região semi-árida das memórias afetivas e imaginárias do burguês recifense intelectualizado. Gomes, Falcão e Ferreira nos dão visões externas dessa geografia específica, focadas em personagens forasteiros (quem sabe, eles mesmos) que olham para tudo aquilo com doses particulares de mistério, realismo, fantasia e/ou senso de perda. Revendo Árido Movie recentemente, voltaram à cabeça as imagens de Cinema Aspirinas e Urubus e de A Máquina, resultando numa interessante (e muito estranha) sessão tripla imaginada.

Gomes, que levou seu filme a Cannes 2005, releu o sertão a partir das lembranças do seu tio avô, Ranulpho, deu enorme atenção aos dois personagens principais (um brasileiro, efetivamente o seu tio-avô, e um alemão, vendedor de aspirinas), sofisticando o mito de João Grilo através de silêncios ali embutidos, de um sarcasmo rude que sugeria afinidade com aspecto notável do filme: seu interesse pela quantidade de luz que entrava na câmera.

Não só o carinho e o respeito pelas memórias familiares estão impressas ali, mas também as recordações de um cinema brasileiro do passado, daquela imagem mítica e esbranquiçada do mormaço, vistas num Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. É um filme simples, quieto, quase mono na sua eficácia, e que se mostra ciente de toda uma herança clássica do Cinema Novo. Na verdade, é um filme antigo, no sentido moderno do termo, e não deixa de ser curioso que, muito provavelmente, será este filme que, fechadas as contas, terá sido o mais visto desse trio pernambucano atual de releituras do interior, em termos de bilheteria (Aspirinas ultrapassou a marca dos 100 mil espectadores).

A Máquina (cerca de 50 mil espectadores, lançado com 70 cópias, sete vezes o número de cópias do lançamento de Aspirinas) reflete de maneira cristalina uma fase atual particular pela qual passa o cinema brasileiro, em especial na sua muito discutida relação de submissão comercial e estética à TV. Será certamente objeto de estudo, se já não o é. Há um posicionamento naturalmente associado à crítica de questionar filmes que evidenciam uma construção narrativa televisiva, em um cinema que tem não apenas a cadência, a imagem e o tom de uma novela (ou especial da Globo), mas, principalmente, as ambições desse tipo de produto (comunicar? ser popular? faturar?).

Curiosamente, o filme de João Falcão é uma obra pessoal, de um realizador que há mais de 20 anos trabalha com teatro, publicidade e televisão. Sua reinterpretação do interior é, objetivamente, trazida por um pot-pourri de estilos que refletem as suas raízes no teatro, propaganda e TV, transformadas no seu longa de estréia. A sua Nordestina, fictícia como a Rocha de Árido Movie, é cenográfica, artificial (aí, diferente da Rocha de Árido Movie) e
mostrada pelo filme velozmente como se fosse uma agitada quermesse de Centro de Convencões. Mais curioso ainda é observar que há paixão nesse longo especial, muito embora o resultado seja, para mim, uma visão estridente e ansiosa de um cinema feio, gestado na TV.

Em termos de cinema, linguagem e vocabulário, há uma diferença abissal entre Aspirinas e Árido Movie de A Máquina, sendo ainda os filmes de Marcelo Gomes e Lírio Ferreira saudavelmente distantes entre si. No filme de Falcão, há ruídos de todas as cores, a palavra deseja falar mais que as imagens e, quando as imagens tentam falar, soam, em partes, soterradas de informação visual, ou simplesmente emudecidas.

Em A Máquina, Nordestina e sua gente do interior é mostrada como fonte atemporal de ingenuidade estilizada via distraída condescendência para com todas as coisas interioranas. Dos três filmes, talvez seja A Máquina a visão urbana e sudestina mais forte para com o interior do nordeste, num exercício impressionante de exotização através das lentes e da filosofia tão frequentes na TV brasileira, em especial na Rede Globo.

Especialmente representativo é o falar nesse filme, aspecto onipresente na trilha de som ao longo de toda a projeção de A Máquina. Se em Aspirinas o falar tem um realismo quase que antropológico, em A Máquina busca-se uma estilização desse mesmo falar, algo que, se fosse novo, quem sabe, poderia trazer algo de curioso, mas, mais uma vez, a referência sonora desta fala já existe na nossa bagagem através de toda uma tradição global de emular quase que eletronicamente um certo sotaque estranho, que, para efeito industrial, é identificado como nordestino, e esse sotaque passa, estranhamente, a ser adotado até mesmo por atores que, de fato, são da região. Poder e identidade cultural.

Árido Movie, que estreou internacionalmente no Festival de Veneza, parece trazer o tratamento mais misterioso dos três, especialmente se o colocamos numa perspectiva de cine-bagagem histórica brasileira. Se há um realismo retrô-nacional em Aspirinas, ou um cinema eletrônico em A Máquina, Lírio Ferreira oferece uma abertura livre e completa para as possibilidades de se fazer um filme no Brasil tendo o cinema universal como fonte confortável de possibilidades, preferindo não pedir uma benção clara e evidente ao Cinema Novo.

Ele parece à vontade com as possibilidades do pop como elemento cinematográfico, sobrepondo-se ao arcaico via estilo alien-fashion que usa o CinemaScope para filmar não apenas enterros, mas também conversíveis, estradas e, um dos aspectos mais fortes do filme, seu grupo formidável de atores. Nos últimos dez anos, e com a chegada das novas tecnologias, a imagem larga, que toma a tela inteira, virou moda no cinema brasileiro, mas poucas vezes o formato ganhou jogo tão interessante como aqui, em especial na sua capacidade de sugerir um western nosso.

É um filme de um pernambucano sobre um paulistano que volta às suas origens sertanejas. O sertão é um interessante enigma para um bom número de personagens. O paulistano (Guilherme Weber, um ator sempre em mono), homem do tempo em rede nacional de televisão, reage a tudo com olhar estrangeiro, pois precisou voltar depois de anos para participar do enterro do seu pai (Paulo César Pereio), vítima de crime passional.

Conhece na estrada uma videasta paulista (Giulia Gam), fascinada com aquele lugar agreste/sertão e interessada pela figura de um velho líder místico que trabalha a água como elemento de fé. Carros pipa viram adereço de direção de arte no filme, que tem nas suas imagens de abertura tanto um copo com água como a água do mar que banha Recife.

O sertão é também elemento de fascínio para três jovens burgueses da classe média pernambucana de corte alternativo (Selton Melo, Gustavo Falcão e Mariana Lima). Representam uma certa vocação pernambucana para a farra hard, e especial apreço pela maconha. De fato, para eles, a maior referência para o sertão é a sua capacidade de produção da erva, numa espécie de mítico shangrila do THC.

Eu não tinha gostado muito de Árido Movie da primeira vez que o vi, no Festival do Rio. Revendo-o, ficou claro que o filme cresce pelo que ele é, e não pelo que ele parecia ser. A frustração durante uma sessão de cinema vem sempre das ricas armações que um filme é capaz de lhe prometer, e, nesse sentido, Árido Movie é uma obra que se desenvolve a partir da sua incrível capacidade de ser pessoal, divertido e inconcluso na sua chapação.

De fato, o filme parece ter na lógica interna da maconha uma das suas mais interessantes graças. Numa cena, personagens têm dificuldade de acabar suas frases, e o próprio filme mostra-se incapaz de concluir boa parte das suas idéias, e isso vai para a sua muito criticada conclusão. De qualquer forma, seria bem mais saudável o atual cinema brasileiro tivesse mais desse tipo de afetação nem sempre bem sucedida.

Não deixa de ser curioso ver que tanto em Aspirinas como em A Máquina, há aqueles que querem deixar o sertão. Ranulpho não aguenta mais o lugar, mas consegue ver de relance distante alguns dos seus improváveis encantos através do olhar do alemão. Já em A Máquina, a menina (Mariana Ximenes) quer ir embora de um lugar onde o carioquês é ensinado (trazido pela TV) em aulas particulares, mas o menino (Gustavo Falcão novamente) quer mostrá-la que Nordestina é especial na sua simplicidade, e o faz midiatizando o lugar e colocando-o no mapa mundi. Ou seja, através da TV, valida um lugar reconhecidamente atrasado.

Em Árido Movie, ninguém parece realmente interessado em fugir dali, e o foco está no personagem forasteiro, que se sente deslocado diante de tanta estranheza (geográfica, de costumes, climática, social). O sertão é misterioso e fascinante, pobre e rico, velho e moderno. Talvez seja, mesmo se escrito por linhas incertas, o retrato mais completo desse
universo.


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