A Sétima Alma
(My Soul to Take),
de Wes Craven (EUA, 2010)
por Fábio Andrade
De
volta à ficção
Na primeira parte de A Sétima
Alma, um caso extremo de dupla personalidade termina com
um homem tentando (e parcialmente conseguindo) matar sua própria
família. A sequência é montada em cortes asfixiantes
e encenada com um acento naturalista à John Carpenter que
é um tanto estranho à obra de Wes Craven - cineasta
essencialmente alegórico. O homem é perseguido pela
polícia e a ação termina com um acidente
de carro que poderia ou não tê-lo matado. Uma das
policiais diz que em sua terra natal não se diz que alguém
tem "dupla personalidade", mas sim "duas almas".
Ao contrário da personalidade, a alma não morre
junto com o corpo e pode reencarnar em outro corpo no futuro.
Uma cartela anuncia "16 anos depois", e nos joga em
terreno que lhe é mais familiar: o palco alegórico
das high schools, onde estar no mundo é também
questão de encenação; onde há sempre
os atletas; os geeks; a garota bonita e manipuladora
que controla toda aquela cena; a jovem estranha de formação
extremamente religiosa; o garoto negro, cego e de bom coração,
etc.
É importante não subestimar o corte temporal como
uma simples relação de causa e efeito (algo que
ele também é), pois ele será essencial para
toda a construção de sentido de A Sétima
Alma: o mito é estabelecido por meio de uma experiência
real e concreta - mesmo quando aparentemente sobrenatural. Os
jovens da escola vão ao local onde o assassino teria desaparecido
para celebrar o aniversário do mito. Ano a ano, todos os
que haviam nascido naquele fatídico dia precisam enfrentar
uma encenação do reaparecimento do assassino e enfrentá-lo,
derrotando um boneco que o representa. No décimo sexto
aniversário - de morte e de vida - é a vez de Adam
"Bug" (Max Thieriot) encarar a reencarnação
do trauma do nascimento (no caso dele, mais tarde saberemos, literal:
ele é o filho do assassino) naquele boneco. Mas ele - garoto
que tem dois nomes, um de batismo e outro de seu personagem social
- fica congelado de pavor e não consegue reagir. Bug, ao
contrário de todos os outros jovens, é aquele que
acredita. A polícia chega e interrompe o ritual.
Bug vê que se tratava de um boneco, mas ali, dentro daquela
encenação, ele parecia tão real... e essa
crença de quem vê as engrenagens de um boneco, mas
ainda assim não consegue conceber que sua vida não
seja real e incontestável, é o suficiente para fazer
que o sangue jorre e os jovens daquela cidade sejam dizimados,
um a um. O estripador - na porção naturalista do
filme, um sujeito normal - volta com a máscara e as roupas
que a encenação anual lhe consagrou. A morte tem
o rosto que o mito lhe dá.
A
Sétima Alma é um filme sobre a ficcionalização,
mas sobretudo sobre a crença no resultado da ficção,
da encenação em si. Os crimes traumatizam o microcosmo
da high school em um choque que estabelece uma paridade:
viver em civilização é aprender a incorporar
uma certa encenação, a assumir um papel a se desempenhar
e acreditar plenamente nele - e a high school é
o rito de passagem por excelência entre um estado selvagem
e outro civilizado, cultivado, na sociedade norte-americana. Como
O Sangue, de Pedro Costa, e Paisagem na Neblina,
de Theo Angelopoulos, A Sétima Alma se dedica
a personagens que estão aprendendo essa encenação
traumática do cotidiano, essa maneira de transformar algo
que é essencialmente selvagem e violento (a infância,
tomada aqui - mesmo que só superficialmente, em um dos
vários truques de fumaça do filme - como sinônimo
literal de pureza, mesmo que decorrente da barbárie) em
um comportamento regrado e harmonioso ao corpo social. Os traumas
são convertidos em mitos, que são posteriormente
transformados em ritos, de forma a purgar a violência em
uma cena segura e edificante: mate o assassino; ele é apenas
um boneco
.
Essa
falácia social funcionaria bem, não fosse a figura
que carrega em seu nome inventado sua vocação de
curto-circuito: Bug é a própria ficção,
a narrativa incorporada. É ele quem muda de voz dentro
de uma mesma cena, em um transtorno multipolar de quem se conta
na polifonia dos vários personagens de uma encenação;
é ele quem reúne os elementos (o celular, a faca)
que conferem ordem à narrativa. É ele quem olha
para o espelho e, como se ele fosse uma tela de cinema, consegue
se comunicar com os mortos. É ele que levanta a voz em
uma encenação em sala de aula, e diz à professora
que é tudo para melhorar a performance. Ele é a
narrativa (a ficcionalização) que, como todo mito,
nasce do próprio trauma, da barriga da mulher assassinada
pelo marido; é "a luz na escuridão", a
promessa de vida que confere algum sentido a toda aquela barbárie.
E a crença - a materialização física
e corporal em uma pessoa – na ficção é
tudo que ela precisa para se tornar verdade, para entrar em choque
com a encenação do cotidiano e revelar as fissuras
em sua base - como as cercas brancas se firmam em um chão
cheio de vermes em Veludo Azul, de David Lynch. Não
à toa, toda a farsa de A Sétima Alma termina
com uma grua absolutamente definitiva, saindo da casa (não
uma casa qualquer, mas a própria idéia de lar) onde
as chacinas se repetem para os símbolos das instituições
que sustentam aquela sociedade e seu mito fundador: uma ambulância,
uma viatura policial e um caminhão do corpo de bombeiros.
Em
época em que o cinema se acomoda em novos paradigmas de
permissividade e flutuação, Wes Craven o reafirma
como ferramenta de produção de sentido, de intervenção
direta na sociedade na qual a arte está fundada. Não
é por o cinema ter passado a ignorar essa patologia de
fundação que ela deixou de existir, e A Sétima
Alma vem também como esse bug, esse vírus
que precisa ser disseminado para que uma certa perspectiva (diria
até uma certa lucidez) seja retomada em um cinema que se
tornou por demais vaporoso, por demais flutuante em seus próprios
afetos. Não deixa de ser curioso que um sujeito outrora
essencial para o estabelecimentos desses mesmos novos paradigmas
na década de 80 – que implodia os limites (e as consequências)
entre ficção e realidade na personagem genial de
Fred Krueger - venha, sistematicamente, reafirmando essa vocação
do cinema como criador de imaginário e de cultura de forma
mais acentuada ao menos desde Pânico 3, culminando
na mais eloqüente resposta ao 11 de Setembro dada pelo cinema
americano que é Vôo Noturno.
Craven - artista que, nos altos e baixos, sempre manteve a pulsação
dos EUA na ponta dos dedos - reafirma obstinadamente essa responsabilidade
em A Sétima Alma, fazendo aqui uma oportuna reafirmação
de princípios, atestando a necessidade de se recolocar
o cinema em seus trilhos. É de fato irônico que,
também desde Pânico 3, seus filmes venham
perdendo ressonância, gritando afirmações
que seguem incompreendidas e colecionando recordes de suposta
inexpressividade (A Sétima Alma - convertido em
3D para o lançamento americano - foi a pior estréia
da história no formato). Mas, em A Sétima Alma,
Craven reconhece tanto esse desprestígio quanto a sua irrelevância:
para que a ficção se complete, basta que uma pessoa
acredite. Basta que alguém olhe para os bonecos, veja que
são bonecos, e ainda assim não tenha dúvidas
de que eles estão vivos, demasiado vivos.
Dezembro de 2010
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