Shame, de Steve McQueen (Reino Unido, 2011)
por Juliano Gomes

Círculos viciosos

Como o título (misteriosamente não traduzido para o português) já indica, este segundo longa de Steve McQueen é um filme sobre a moral. Ela se estrutura como um conjunto de costumes que se acreditam como “bons” em relação a um valor transcendente e, portanto, imutável. Então, onde está a vergonha nessa história de compulsões? Talvez na cena onde Brandon (Michael Fassbender) joga todos seus artigos pornográficos no lixo, ou quando não consegue consumar o sexo com sua colega de trabalho. A vergonha é uma espécie de medo de um julgamento, de uma condenação. A instância que julga aqui não é outra senão a própria matéria do filme.

No que parece um gesto claro, muito claro, de buscar um diagnóstico de uma determinada sociedade num certo tempo, isto é, um substantivo comum que represente um grande conjunto, que o defina, é curioso como o resultado é absolutamente oposto à nobre proposta. Se já entramos no filme com a associação entre sexo serial, vídeos virais e capitalismo corporativo, na transição da primeira cena para seguinte, na qual ouvimos uma lição de como “transformar o cinismo em admiração”, é ainda mais impressionante que o filme se auto-comente de maneira tão explícita e passe os noventa minutos seguintes expondo em variações tais limitações já anunciadas de cara. O cinismo está justamente em adotar uma suposta posição de confronto, de quebra da “ordem”,  ao filmar uma história de um tipo de desvio de conduta que esfregaria na cara do nosso tempo uma verdade profunda sobre ele mesmo, um desmascaramento. Mas, na verdade, Shame afirma justamente esta suposta ordem, ao narrar a história desse homem como uma odisséia do desvio, da culpa e da degradação.

O cinismo acaba sendo a face visível de um temor em quebrar este jogo de cartas marcadas, onde os lugares vão sendo martelados a cada enquadramento calculado e som fora de quadro. Há um desejo de controle que resulta em uma unidade visual e sonora que chama muita atenção para si. McQueen domina as técnicas do cinema de arte “rigoroso”, situa seus personagens com muita precisão, infla o fora de quadro, reforça os contrapontos sonoros, porém seu cuidado de mise en scène esbarra num obstáculo intransponível que é a própria maneira como o filme se coloca diante do drama que ali se dá. Não há problemas em filmar conceitos, parábolas, generalizações, grandes assuntos, ou coisas afins, mas para isso é preciso dar relevo a estas matérias para ser minimamente justo com suas complexidades, no mínimo esboçando suas linhas, apontando a existência de caminhos. As elaboradas cenas de Shame mais parecem servir como distração para a inocuidade de seu drama. As linhas de continuidade que o filme estabelece não parecem sofrer nenhum tipo de abalo; tudo é o que parece no primeiro momento e assim há de permanecer, e assim por diante: a vida pessoal como extensão do trabalho; o interior como extensão do exterior e vice-versa; a cidade como protagonista do drama (e culpada deste). Tudo se liga por continuidade, homogeneidade, representação. Se Brandon chora, a cidade chora junto com ele; eles são a mesma coisa, sofrem do mesmo mal, confirmam um ao outro.

A verdadeira protagonista aqui, a cidade de Nova Iorque, o conjunto que tudo engloba e engole dentro do filme, é uma espécie de cidade-tela. A superfície recorrente no filme é a grande janela de vidro, fechada. Ela é uma espécie de não espaço: parece uma abertura, mas é absolutamente intransponível. É um instrumento para manter tudo em seu lugar, permanentemente, uma grande muralha que separa, que cria ligações indiretas, mas nunca uma inversão de papéis. Se o filme quer atenuar ou dar outros contornos à seqüência onde Brandon vive sua maior crise (que, não por acaso, se encaixaria muito bem em um filme como Irreversível, de Gaspar Noé) ao lançar uma música suave, ele acaba por afirmar ainda mais esses opostos,  pois nada do filme realmente encena algum tipo de reversão. Em seu absolutamente esperado “final aberto”, temos tudo menos uma situação de real abertura, pois ao personagem só resta condenação dos dois lados: ou é um refém de sua purgação vivida nessa seqüência da crise, ou se mantém no seu trágico trajeto desviante, obrigado a significar, fadado a sinal dos tempos.

Shame encena uma espécie de autocondenação puritana só para exibir seu próprio saber para si mesmo. Trata-se, afinal, de um jogo de auto-estimulação repetida que reitera a hipótese já mencionada de auto-comentário em relação à compulsão sexual solipsista de Brandon. McQueen cria um falso problema para dar-lhe uma muito bem cuidada falsa solução. Mas, ao estender esse projeto aos grandes conjuntos (o mundo, o século XXI, o capitalismo cognitivo, a descartabilidade das relações...), suas simplificações se expõem como um esforço grande demais para sua capacidade de analista da contemporaneidade, resultando numa reiteração de idéias bastante primárias e antigas sobre os limites das práticas sexuais e afetivas, ao invés de dar-lhes algum mínimo movimento ou desfazer as batidas associações entre sexo para fins não reprodutivos, vergonha, degradação e perversão. Toda a jornada em direção à sensibilização que sua irmã, Sissy (Carrey Mulligan), causa em Brandon não cessa de reiterar sua condenação, pois crê no modelo que opõe o puro, o sensível, ao insensível, frio e solitário – e a sua circularidade, ao repetir a situação do metrô, só atesta isso. E, afinal, na esperança de ser um oportuno iconoclasta, McQueen acaba somente por renovar e lustrar as máscaras dos seus inimigos.

Abril de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta