in loco - cobertura dos festivais
Shokuzai - Penitências (Shokuzai),
de Kiyoshi Kurosawa (Japão, 2012)
por Filipe Furtado

Na presença do mal-estar

Antes de qualquer coisa, é bom dar um pouco de contexto: Shokuzai - Penitências não é propriamente o muito aguardado primeiro longa de Kyioshi Kurosawa após Sonata de Tóquio, mas uma minissérie de prestigio para a televisão japonesa baseada num best seller local. Se é inegavelmente uma obra pessoal de Kurosawa, que merece a atenção dos seus fãs, a despeito da sua presença em Veneza e agora no Festival do Rio, não estamos diante de uma obra como Mistérios de Lisboa, cuja origem televisiva é sobretudo uma questão de duração. Trata-se de um projeto realizado para ser visto em episódios ao longo de vários dias, e com alguns elementos estéticos (como a iluminação) que visivelmente não foram pensados para exibição em tela grande. Numa época em que o universo de “cinema de festivais” encontra um inegável fetiche com os filmes de longa duração, é bom apontar que Shokuzai está bem longe de ser alguma súmula ou obra-prima da carreira de Kurosawa até aqui. Sua duração é somente decorrência natural do seu formato, trazendo com ela seus prós e contras.

Shokuzai se abre com um assassinato de uma menina. Quatro das suas amigas de colégio a presenciam saindo com o assassino e depois encontram seu corpo, mas são incapazes de dar qualquer descrição do culpado à policia, para o desespero da a mãe da morta (interpretada por Kyoko Koizumi, a mãe de Sonata de Tóquio, em quem Kurosawa deposita boa parte da força do filme), que amaldiçoa as jovens e exige que elas paguem a penitência do titulo até o assassino finalmente ser capturado. A maior parte da ação transcorre 15 anos depois e cada um dos episódios segue uma das sobreviventes, invariavelmente desajustadas, num drama particular assombrado pelos eventos iniciais (sempre retomados por uma perspectiva ligeiramente diferente no começo deles), até o episodio final que se centra sobre Koizumi – que aparece ocasionalmente nos episódios anteriores para lembrar as protagonistas da divida que mantém com ela – e resolve o assassinato inicial.

É uma estrutura que permite a Kurosawa partir dos mesmos sentimentos de culpa e inadequação e reimaginá-los sobre várias ficções de tons muito variados, indo do macabro ao farsesco até o miserabilismo fácil. Trata-se de um ótimo uso do formato de antologia que a televisão permite, e que garante a Penitência uma riqueza de registro que a sua sinopse não pressupõe - apesar de por vezes reforçar uma impressão de irregularidade do projeto como um todo (o terceiro episódio é especialmente frágil) e prejudique a experiência de vê-lo num fôlego só. A cada momento em que o filme avança em direção a um clímax, ele rapidamente é interrompido e reinicia sua narrativa de forma morna numa outra chave. Shokuzai, como um todo, é muito mais habilidoso ao explorar o desequilíbrio que o ato inicial provoca em todas as suas personagens do que ao encontrar uma saída para ele, com alguns episódios com soluções finais apressadas, e o episódio final explicativo demais na sua busca por resolução para toda a tragédia que desenvolvera até ali.

Se o projeto retém uma força maior, ela se dá sobretudo na maneira com que permite ao cineasta encontrar formas diferentes de se aproximar do mal-estar. Shozukai sugere uma coleção de retratos de esvaziamento, todas as cinco mulheres em estados variados desse sentimento. É uma ideia que se apresenta de forma física e direta (uma delas nunca menstruou, outra está grávida e suspeita-se ainda mais vazia por conta disso, outra mantém a mesma constante postura rígida em todas as situações, etc.) em que Kurosawa, em parceria com suas atrizes, consegue entrecortar os excessos psicologizantes do material (se o terceiro episódio é o mais fraco e o quarto o mais forte, é justamente porque são episódios que pior e melhor driblam o dilema do material). Não à toa, a determinada altura, Kurosawa sugere o aborto como porta de entrada para o estado de espírito das suas personagens. O que importa, portanto, é localizar este mal-estar inicial, e trabalhar as maneiras como a pressão do tempo agiu sobre ele, e ajudou a corroer aquelas existências desarranjadas.

Shokuzai é uma extensão natural de Sonata de Tóquio,na qual a presença do sobrenatural é novamente oculta, mas sempre sugerida no peso da crueldade do filme – ideia que, se aparecia nas entrelinhas do filme anterior, ganha muita força aqui. É essencial para o projeto como um todo que o episódio final revele que o ato de violência que desencadeia a ação é na verdade precedido por outro, anos antes, e o quanto tudo que vimos até ali é, na verdade, efeito colateral. É uma pena que a resolução seja dramaticamente oca e dependente em excesso de um misto de coincidências e múltiplos atos de vingança que se dobram uns sobre os outros e pontuam ironicamente a trama. Tanto quanto as suas personagens, Shokuzai também se esvazia, ele próprio, ao longo das suas mais de quatro horas.

Outubro de 2012

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