sessão cinética
Gente da Sicília
(Sicilia!),
de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet
(França/Itália/Suíça, 1999)
por Luiz Soares Júnior
A
épica dos gestos
A imagem que sugeriu ao casal Jean-Marie Straub
e Danièle Huillet a criação de Sicilia!
se oculta na abertura do filme: em 1972, quando estiveram pela
primeira vez na Sicília, viram toneladas de laranjas jogadas
no fundo do leito de um rio, numa estratégia para evitar
a quebra dos preços: o capitalismo é uma máquina
de consumação e excreção de presenças,
um insaciável Moloch da experiência. Não vemos
o leito do rio, sequer a testemunha deste estado de coisas: um
homem nos dá as costas, um baluarte de estanho e taciturnidade.
Um siciliano? Não, um exilado, um corpo sem identidade,
sem história: é confundido pelo vendedor de laranjas
com um americano e pelo amolador de facas no final com um
forasteiro. Não lhe conhecemos ainda as feições.
Sicilia! vai tentar traçar esta história
- reconstituí-la? -, dar a este homem um passado e um destino.
Para começar, ao inventariar os espaços onde uma
memória ainda habita, a enumeração dos sítios
onde uma história teve lugar, na viagem de trem:
Donnafugata, Castelvetrano, Messina. De onde veio este homem,
expropriado de seu próprio passado, um apátrida
de si mesmo?
Todo o filme é estruturado segundo uma
lógica da recitação, onde presenças
- lugares, comidas, gestos, hábitos - são enfileiradas
umas após as outras e, por intermédio da palavra,
advêm a uma plenitude material inigualável. Mas não
qualquer palavra, dramática ou expositiva; a palavra straubiana
é epifânica: ela mostra a coisa em seu espaço-tempo
único, infinitivamente presente; o saboroso canto,
o sotaque, as pausas e precipitações que emanam
da emissão dos atores, fruto de muito ensaio e judicioso
treino, servem justamente para isso: não se trata de mera
evocação ou descrição naturalistas,
mas de presentificação. Como bem diz um
texto de Fitoussi sobre as filmagens do filme, "o prazer
de filmar dos Straub vem de um trabalho de reencontro, reencontro
com uma realidade que preexistia ao texto, e que o texto conserva
em estado latente - assim, eis o prazer dos nomes em Vittorini,
todos intensificados em sua enumeração pela alegria
de saber que a coisa nomeada existe ou existiu".
O trabalho necessário aos diretores sobre os corpos e as
dicções dos atores visa à restituição
desta inocência perdida (que Kleist entrevia no teatro das
marionetes), e que para o homem moderno paradoxalmente só
pode ser reconquistada às custas de uma dura ascese, de
um incansável exercício: exercício de prosódia
e de pantomima que, ao transformar o ator em um autômato
espiritual - antes de tudo, um corpo que fala, e não
uma fala que se exprime num corpo - libera a palavra
para sua materialidade primeira, despojando-a do peso da significação,
psicológica ou dramática. Para o antropólogo
Marcel Jousse, a origem da palavra está no gesto:
a palavra figurasonoramente uma inscrição material,
uma certa inflexão do corpo, fixada por sua vez em uma
experiência espaço-temporal de uma terra e de um
tempo que foram meus. (E aqui não podemos deixar
de recordar a definição benjaminiana,
em seu "O que é o teatro épico?", texto
em que tenta conceituar o que caracterizaria a essência
da obra de Brecht: O teatro épico é gestische
- gesto). A recitação em Sicília!
é um fio-condutor que leva das palavras às coisas
que as sedimentam, e novamente das coisas às palavras,
onde os elementos - corpos humanos ou naturais - tendem a se fixar,
e assim aspirar a uma espécie de eterno presente,
inscritos no palimpsesto do plano.
Se
a palavra é o lugar de uma plenitude aurática, a
imagem de Sicília! é marcada por um déficit,
uma série de buracos negros: estranhas suspensões
temporais que paralisam os personagens num vacuum que
designa o plano como uma experiência de exílio e
de alienação; elipses que designam uma irredutível
distância entre o campo e o contracampo, distância
que espelha a alteridade radical do personagem em relação
àquele mundo. A seqüência do encontro com a
mãe, cuja função dramática estaria
justamente em possibilitar uma reconciliação do
personagem com seu passado - telúrico e afetivo -, neste
sentido é paradigmática: os personagens se defrontam
em um campo e contracampo disjuntivo, um equivalente cinematográfico
da parataxe épica no verso hölderliniano,
que Adorno identificou em seu ensaio sobre a poética tardia
de Hölderlin. Menos um refúgio dialogal que uma arena
trágica, menos um reencontro que um auto de acusação
e lamento mútuos e irredutíveis; em cada plano,
a mãe e o filho se entrincheiram, em uma fortificação
monologal. Não há a rigor um campo versus um contracampo,
uma cadência de troca e coordenação; um stacatto
atonal, um invisível abismo interdita a cristalização
de uma unidade semântica e numinosa, que condena mãe
e filho a um estupor que se materializa em gestos maquinais, taquigráficos
- "corta o melão!" - ; é como se o tempo
- o tempo de uma história, o tempo de sua história
- tivesse se paralisado, espacializado, geometrizado,
como bem nos mostra o trabalho com a angulação e
com o faux raccord da seqüência. Como se não
fosse mais possível uma experiência comum aos personagens,
um "ir adiante".
Aqui, Silvestre contempla a mãe e o mundo
que ela representa "do lado de fora", protegido pela
barreira do plano: um irremediável peregrino, alguém
que ainda não encontrou o seu lugar no mundo (e no filme),
que talvez jamais encontre. Um incomensurável fora de campo,
uma história da qual jamais saberemos os detalhes, fantasmagoriza
a sequência, impedindo que o encontro se consuma: é
a presença (ausente) do amante morto, um substituto do
pai, um rival a ser enterrado, um passado a ser enlutado, se quisermos
realmente prosseguir. Agora, entendemos o significado da lenta
panorâmica sobre um campo siciliano que inaugura a sequência
do reencontro com a mãe, panorâmica repetida ao fim
do colóquio. Aquela não era uma paisagem, um istmo
de reconciliação com a terra, mas um cemitério,
onde provavelmente estava enterrado o amor da mulher. Dificilmente
pode-se falar "apenas" em paisagens no cinema dos Straub;
há sempre um uso ativamente dialético do fora de
campo que redimensiona o campo, que transforma toda paisagem em
um marco de cultura ou de barbárie - como no belo exemplo
dado por Serge Daney a respeito do Un coup de dés,
onde atores lêem trechos do poema de Mallarmé sobre
o que parece a princípio uma colina; o que não sabemos
- o filme não nos diz - é que a suposta colina
era o cemitério onde estavam enterrados os resistentes
da Comuna de Paris. Agora que o passado está morto e enterrado,
Silvestre nos é mostrado em um primeiríssimo plano,
com a profundidade de campo que nos mostra uma rua a se perder
de vista, na distância de uma herança com a qual
enfim se regraram as contas. É a hora da recitação
final, na palavra oracular do amolador de facas: celebração
do presente como dom, festejo panteísta do por-vir.
Fevereiro de 2011
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