in loco - cobertura dos festivas
Siri-Ará, de Rosemberg Cariry (Brasil,
2008) por Eduardo Valente No
cinema figural, ganha o segundo
As primeiras imagens
que vemos do Ceará em Siri-Ará são visões noturnas de Fortaleza,
vistas a partir do mar. Depois delas, vemos uma família vestida como migrantes
do sertão (incluindo uma menina com fortes traços indígenas vestida de anjo) que
caminha pelo calçadão contemporâneo da capital cearense, e cruza com duas cenas
lapidares: primeiro, um gringo que negocia sua noite com uma prostituta numa mesa
de bar; e depois um vendedor de bugigangas coloridas e piscantes que atrai o olhar
das crianças do grupo. Esta espécie de introdução do filme, antes de seu enveredamento
pela paisagem sertaneja, diz muito dos interesses e dos métodos de Rosemberg Cariry
neste seu mais recente filme. Dos interesses, por contrapor desde o início algo
que, se não se caracteriza exatamente como uma pureza de um povo originário do
sertão, chega bem perto disso (onde a fantasia de anjo é particularmente definidora),
a uma presença predadora do estrangeiro (representado no gringo e nos brinquedos
brilhantes). Dos métodos, por trabalhar desde aquela pequena encenação de dois
momentos simples como estes com um tom sempre acima (ou ao lado, talvez) do naturalismo,
um tom que deixa claro que o abraço ao alegórico será sempre bem-vindo. De
fato, logo nos créditos iniciais Siri-Ará declara-se como representante
(fundador?) de um chamado “Cinema Figural Brasileiro”. Tomando-se o próprio filme
como o manifesto do que seria este cinema, podemos compreendê-lo através de uma
dupla vertente. Pelo lado estético, esta opção radical pela alegoria e pelo abraço
ao teatral/performático como forma de expressão, dentro de uma certa radicalidade
de registro que coloca Cariry como um corpo estranho no cinema brasileiro atual
(talvez possa ser encontrado algum paralelo apenas com o filme mais recente de
seu conterrâneo cearense José Araújo, As Tentações do Irmão Sebastião).
Pelo lado discursivo, o filme afirma esta necessidade de ir em busca das origens
de um sentimento de mundo, de enxergar na História a possibilidade da fábula criadora,
mas também do horror. Sim, porque há algo de filme de horror em Siri-Ará,
na maneira como se dão todas as relações entre os grupos distintos que formam
a herança contemporânea cearense, sempre mediadas de uma forma ou de outra pela
barbárie. Se o olhar de Cariry sobre o passado incorpora literalmente a idéia
de antropofagia, esta não se dá com tintas alegres, mas sim como resposta única
possível aos (também literais) estupros que a antecedem. Se
todas estas características emprestam ao cinema de Cariry uma peculiaridade tremenda
(e que tem marcado boa parte da sua obra, que trilha caminhos curiosamente isolados,
não só do resto do cinema nacional mas inclusive do contato com o público – a
maior parte dos seus filmes nem tendo tido lançamento comercial), não se pode
dizer que elas tornem Siri-Ará uma experiência cinematográfica plenamente
resolvida, apesar de brilhar com algumas imagens certamente pregnantes (como os
lagartos crucificados ou os seres-míticos encarnados por dançarinos em contra-luz).
Isso acontece em grande parte pela disposição extremamente discursiva e didática
do filme, não por acaso todo narrado a partir da voz off de uma professora
francesa, cujo ex-marido migrante sertanejo e antropólogo é uma das linhas mestras
da narração, numa jornada de volta ao sertão em busca de suas origens. Esta voz
propositalmente distanciada, estrangeira mesmo, parece não só querer reposicionar
um olhar sobre o espaço e a História, mas também e principalmente servir de guia
ao espectador pelas imagens que Cariry monta. Ela acaba mesmo, porém, é esfriando
uma relação que se torna bem pouco orgânica: vemos os tableaux de Cariry
de uma distância confortável, que transfiguram o tal “cinema figural” em algo
próximo de um desfile de escola de samba com suas alas extremamente bem explicadas
e dissecadas. Na mistura com as artes, a filosofia, a história e a antropologia,
sobra pouco espaço de fato para o cinema no trabalho de Cariry, e esta é a questão
de que o filme mais se ressente. Novembro de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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