Um Lugar Qualquer (Somewhere),
de Sofia Coppola (EUA, 2010)
por Fábio Andrade
Em círculos
Somewhere começa com um plano que mostra um trecho
de uma pista de corrida de carros de formato circular. Ouvimos
um carro vindo de fora do quadro, até ele entrar na única
curva visível e, em seguida, sumir da imagem e voltar a
existir somente pelo som. A cena permanece fixa, esticada por
alguns minutos, enquanto o carro dá volta, e mais volta,
e mais volta. Após alguns minutos, o carro é estacionado,
e dele sai Johnny Marco (Stephen Dorff), que pára no quadro
sem demonstrar intenção de ir a qualquer outro lugar.
Não
é exagero dizer que Somewhere está todo
resolvido neste primeiro plano. Estilisticamente, já temos
apresentados todos os principais recursos adotados por Sofia Coppola
neste filme: planos longos e estáticos; uma encenação
lacunar (vemos apenas parte da pista) que usa a repetição
e a musicalidade da mise en scéne para manter uma
pulsação interna; a cena pensada como uma redoma
que é constantemente pressionada pelo fora-de-quadro (no
caso, o ruído do motor); uma palheta esmaecida, bastante
distante da perfurmaria de Maria Antonieta e Virgens
Suicidas, e mesmo das luzes vibrantes de Encontros e
Desencontros. E narrativamente, também já está
tudo ali: uma estória sobre um sujeito que gira em círculos,
aproveitando a potência do próprio motor, mas que
não sabe exatamente o que fazer quando desliga o carro
e põe os pés no chão. O que veremos, em sequência,
é basicamente uma repetição, cena após
cena, desse mesmo padrão, em um filme que nunca parece
ter força para se libertar de sua conjuntura centrípeda.
Ao contrário, Somewhere é um filme de potência
- e não de força - como se cada cena pisasse um
pouco mais fundo no acelerador, mas lhe faltasse a decisão
de engatar a primeira marcha para sair, de fato, do lugar. É
um filme que parece correr toda sua duração aguardando
o momento de começar. Essa impotência cinematográfica,
porém, é questão narrativa: Johnny Marco
é um ator hollywoodiano de sucesso, e é justamente
esse sucesso que o condenará à imobilidade emocional,
familiar, pessoal e mesmo profissional. Sua vida se reduziu a
cumprir os horários marcados por sua agente, gastar dinheiro
de forma inconsequente, e levar desconhecidas para a cama. Sofia
Coppola se firma, aqui, como uma curiosíssima cronista
dos afetos e neuroses que circulam e morrem no universo das celebridades.
Somewhere seria o embarque no humanismo providencial
e calhorda que olha nos olhos de todas aquelas figuras de cera
e cetim e diz: há, por trás dos rostos remendados
pelas cirurgias plásticas e coberto por toda essa maquiagem,
uma pessoa como cada um de nós da platéia, com as
mesmas carências, os mesmos sentimentos e a mesma necessidade
primária de ser amado de verdade. Será?
Somewhere poderia de fato ser tudo isso, se não fosse
uma evidente refilmagem de Encontros e Desencontros.
Se, no filme de 2003, Bob Harris (Bill Murray) - lembremos, um
ator de sucesso acometido de uma enorme insatisfação
pessoal e profissional - encontraria a saída de sua leve
depressão na solidão compartilhada de uma mulher
mais jovem (Charlotte, personagem de Scarlett Johansson), é
exatamente a mesma coisa que acontecerá com Johnny e a
personagem de Elle Fanning - com a única diferença
de, aqui, a relação paternal ser também de
sangue. Enquanto as personagens de Encontros
e Desencontros se conheciam em um hotel - o não-lugar
absoluto - em Tóquio, Johnny Marco mora em um hotel em
Hollywood. Se, em Encontros e Desencontros, Charlotte
preparava Bob para a compra do Porsche que sacramentaria sua crise
de meia-idade, Johnny termina a projeção dirigindo
uma Ferrari que tem forte poder simbólico no filme.
Mas,
mais do que meros correspondentes narrativos, Somewhere
parece ser de fato uma recriação plano a plano de
Encontros e Desencontros: as gêmeas em pole
dancing sincronizado e a prostituta mandada como presente
ao quarto de hotel de Bill Murray; o constrangimento na premiação
da Telegatto e o programa de televisão japonês; o
karaokê e as partidas de Rock Band; a paixão
que observava Scarlett Johansson de peruca rosa, encarnando Chrissie
Hynde na interpretação de "Brass in Pocket",
e o amor que aflora com um número de patinação
de Elle Fanning (que nos lembra o formato circular do primeiro
plano e que é predominante em todo o filme, mas que aqui
esbanja uma graciosidade que inexiste na dureza do Porsche); os
corpos deitados lado a lado na cama de um quarto de hotel, e os
corpos estirados lado a lado em duas espreguiçadeiras à
beira da piscina; etc, etc, etc.
Não
há humanismo possível quando um mesmo universo olhado
passa a ser trabalhado como produção em série.
Se sentimos franca empatia pela personagem de Johnny Marco - e
uma das coisas mais impressionantes de Somewhere é
o quanto a rarefação quase total de narrativa, os
planos longos e a própria calhordice do protagonista conseguem,
ainda assim, conquistar e manter o espectador em comunhão
com tudo aquilo até o fim - essa empatia é de outra
ordem. Afinal, já vimos essa estória antes, já
sabemos como ela acaba - e aqui a cena do cochicho inaudito é
substituída por uma ainda mais trágica: ouvimos
o que Johnny Marco diz para sua filha, mas o barulho do helicóptero
impede que ela o ouça - e a repetição
sistemática de uma rotina narrativa (no caso de Somewhere,
tão linear na relação crescente entre pai
e filha, quanto modular em sua repetição) faz apenas
evidenciar que as questões de Sofia Coppola são
outras.
Pois Somewhere retoma Encontros
e Desencontros para afirmar que o coração do
filme não era, exatamente, a estória daquelas duas
personagens. Ao banalizar a narrativa, Sofia Coppola chama atenção
ao que havia de realmente memorável em sua obra-prima: a
arquitetura precisa de pequenos momentos de intimidade; a condensação
atenta de uma certa sensibilidade
contemporânea; a dedicação irrepreensível
ao filmar duas pessoas conversando (como vemos nas inspiradíssimas
trocas entre Elle Fanning e Chris Pontius - mais conhecido como
o Party Boy da série Jackass); o talento raro de
criar imagens que condensam, em sua composição gráfica
e semântica, o sentimento que as palavras não conseguem
exprimir - e em Somewhere há ao menos dois momentos
dignos de antologia nesse sentido: o já citado plano das
cadeiras à beira da piscina; e o helicóptero estacionado
frente à falsidade real do skyline de Las Vegas.
Somewhere é praticamente todo dedicado à
sua própria orquestração interna, sem com isso
se perder em um abismo estético. De toda a artificialidade
do filme e do universo filmado, Sofia Coppola consegue produzir
uma vida tão palpável que é capaz de convencer
que o cinema não poderia ter função mais nobre
do que simplesmente registrá-la.
Outubro de 2010
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