in loco - cobertura dos festivais
Irmãs Jamais (Sorelle Mai),
de Marco Bellocchio (Itália, 2011)
por Filipe Furtado
A
história privada
O que significa
dizer que um filme é um filme histórico? A convenção
sugere que é uma questão simples: um filme histórico
é um filme que se passa/se refere a um momento histórico.
Esta é, porém, uma resposta muito insuficiente.
Pensemos nos filmes de Marco Bellocchio: por conta do nosso mercado
distribuidor – que nos últimos 15 anos só
encontrou espaço para Bom Dia, Noite e Vincere
– é fácil se referir ao diretor italiano como
um cineasta da história. Mas não seria o contemporâneo
A Hora da Religião tão ou mais histórico
quanto Bom Dia, Noite?
Uma
das qualidades mais notáveis do cinema de Bellocchio é
justamente como ele apaga as diferenças entre macro e microhistória.
A forma como um melodrama familiar como Olhos na Boca
abraça todo um processo da história vai bem além
das fronteiras da sua trama. Os planos de Marco Bellocchio invariavelmente
vêm assombrados por toda uma experiência que veio
antes deles. Se a Itália é um espaço histórico
por excelência, então Marco Bellocchio é seu
cineasta essencial. Sua câmera parece estar ali plantada
bem antes das filmagens, seus lugares existem muito antes dos
filmes. Isto tudo fica ainda mais claro diante de um filme como
este Irmãs Jamais, que aparentemente é
tão pouco conseqüente: pequeno drama familiar, caseiro,
quase amador. Estamos tão distantes quanto possível
de Mussollini ou dos brigadas vermelhas; as relações
aqui traçadas não poderiam existir mais longe da
Itália de Silvio Berlusconi. Só que Marco Bellocchio
é um legitimo cineasta: não só filma; pensa
o que faz o tempo todo.
O
processo de Irmãs Jamais é muito maior
que as suas aparências. Mais do que qualquer outro filme
de Bellocchio, Irmãs Jamais é um filme
da microhistória. Tudo aqui é uma questão
de processo e de retornos: de uma série de workshops que
o cineasta organizou na sua cidade natal, Bobbio, ao longo de
dez anos, Bellocchio aos poucos foi construindo seu filme, menos
com uma idéia de dramaturgia e mais com um acúmulo
de eventos e novos encontros. Um dos prazeres maiores de Irmãs
Jamais é justamente observarmos como ele vai aos poucos
ganhando forma, já que é visível, no episódio
inicial em particular, que não havia um projeto claro quando
se começou a filmar. Não surpreende que seu princípio
organizador, a despeito de todas as relações humanas
que apresenta, é da ordem burocrática: cada episódio
é norteado por uma compra, uma venda, um empréstimo,
uma reunião, etc.
Retorna-se
à velha casa de família que Bellocchio parece insistir
em filmar de tempo em tempo desde De Punhos Fechados.
Mas a chave aqui é, com certeza, mais terna do que em filmes
anteriores - ainda que este olhar não esconda que este
lugar em que se cresce e se acumula experiências, como faz
Elena, filha do diretor, ao longo do filme, é também
uma prisão da qual não se escapa jamais, como o
retorno constante do cineasta ao local atesta. O retorno
a Bobbio nunca é simples para quem já saiu dali,
como o casal de irmãos que protagoniza o filme; é
retomar uma história sempre dolorosa, que prefere-se colocar
de lado. A exceção, evidentemente, é a menina
Elena, que o filme observa a crescer e a formar sua própria
história – e um dos pontos encantadores do filme
de Bellocchio é justamente como o cineasta articula seu
prazer ao ver a filha crescer nos seus planos. É onde o
filme revela sua grandeza, porque Irmãs Jamais
não é sobre seus eventos tanto quanto sobre os espaços
entre eles. Não existe história sem experiência,
e, cada vez que a câmera de Bellocchio retoma estas suas
personagens, sentimos ali o peso de tudo o que não vimos.
Muitos filmes trabalham sobre longas elipses e, mesmo quando elas
chamam atenção para si mesmas, elas raramente ganham
o peso e valor que Bellocchio lhes oferece aqui.
É
notável como, mesmo neste que é de longe o olhar
mais carinhoso que Bellocchio já lançou sobre a
família italiana, Irmãs Jamais se encerra
com o registro de um desaparecimento, de uma fuga da comunidade
daquele que chegava até nós como seu membro mais
responsável. É a pergunta que, por fim, norteia
o processo histórico político italiano e que o cinema
de Bellocchio, mais do que qualquer outro no pós-Guerra
(com exceção de Rossellini), captura tão
bem: a contradição de lidar com uma sociedade
cuja História garante tanto uma perspectiva social única
e uma das morais mais conservadores, que abarca tão facilmente
Gramsci, Croce e o Vaticano. A história privada de Irmãs
Jamais e seus afetos comunitários encontram-se com
este teatro mais amplo – e, não à toa, este
desaparecimento se revela a nós de forma tão ritualizada
– que a desestabiliza. Resta-nos o inexplicável da
imagem da cartola a boiar nas águas do Rio Trebbia. Do
teatro do processo histórico italiano, seu cineasta se
recusa a fugir.
Novembro de 2011
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