Luz Silenciosa (Stellet Licht),
de Carlos Reygadas (México/França/Holanda/Alemanha, 2007)
por Cléber Eduardo

O autor antes da obra

Há diretores cuja autoralidade nasce dos filmes e outros cujos filmes nascem da autoralidade. Carlos Reygadas é desse segundo tipo. Parece ter um projeto estético anterior aos três filmes, um projeto de olhar sobre o humano, que persegue na escolha dos assuntos e nas opções visuais. Longos planos-seqüências, poucos diálogos, uma marcação dura para os atores, personagens aparentemente abduzidos ou dopados e uma tendência a mostrá-los mal no início e pior no final, assumindo um ponto de vista pessimista, que supõe um movimento de ladeira abaixo.

Luz Silenciosa atende a esse projeto de autoralidade conceitual, que parece tatear na maneira de filmar as situações algum traço metafísico, algo inerente a condição humana, que diz pouco diretamente da origem mexicana, com relação mais estreita com um Bruno Dumont, mas com a superioridade das operações sobre os efeitos. Nos primeiros minutos, após uma cena de oração em silêncio à mesa, antes do café, nos primeiros minutos da manhã, Johann chora copiosamente, sozinho, depois de sua família sair de casa. O ambiente é rural. Ouve-se diálogos em um idioma estranho (na verdade um dialeto derivado do holandês), falado por uma comunidade de protestantes no Norte do México – informação essa não encontrada no filme. A impressão que fica, pelo dialeto e pelas interpretações (todas sorumbáticas), é que estamos em um filme escandinavo, de Aki Kaurismaki, por exemplo, ou em um remake de Carl Dreyer. Essa segunda impressão é explicitada pelo nome do protagonista, Johann, o mesmo de Ordet, e por uma situação, quase ao final do filme, que recicla a volta à vida do filme de Dreyer.

Na sucessão de planos-sequências de longa duração, uns fixos, outros em travelings, sentimos a gravidade e o peso perseguidos pela proposta. A câmera se aproxima lentamente de alguém ou de algum lugar em alguns momentos, mais interessada no tempo do movimento e não no movimento ou na revelação visual dele, como se houvesse um enigma em cada lugar e em cada rosto para ser decodificado e diagnosticado. Pode-se acusar o cineasta de ser supostamente fiel a sua percepção de mundo e de se dispor a afirmar uma estética sem igual hoje na contemporaneidade? Reygadas faz algo proibido no cinema ou, justamente por subverter alguma coisa nesse processo, torna-se uma marca reconhecível no cinema? Mas não será, cada vez mais, nesses três filmes, apenas uma marca?

Mais ou menos como tem acontecido com os filmes recentes de Tsai Ming Liang, os seres em cena parecem desprovidos de sangue, automatizados pelas infelicidades, pelas regras, pela condescendência com suas ralentadas existências. Para não dizer que só há estilo, lembremos do conflito principal, que na verdade são dois em um: a perda de potência amorosa entre Johann e sua esposa Esther, com quem tem uma prole, e a paixão dele por uma outra mulher, Marianne. Paixão em termos. As imagens dos dois juntos parecem tétricas. Os amantes dão um dos mais longos e gelados beijos do cinema. Uma maneira de Reygadas, como já havia mostrado antes, de recusar qualquer beleza/poesia. É sua visão impressa em imagens.

Parece haver uma quase unanimidade entre críticos e diretores mexicanos em torno de Carlos Reygadas, ao menos sobre sua atual condição de mais ambicioso cineasta de sua geração no México, composta genericamente por aqueles surgidos a partir dos anos 90 (Guillermo del Toro, Alfonso Cuaron). O mais pop dessa geração, Alejandro González Iñarritu, considera Reygadas um gênio. A curadoria das diferentes seções do Festival de Cannes também o joga para o alto, sendo co-responsável, depois de selecionar seus três longas (Japón, Batalha do Céu e Luz Silenciosa), pelo prestígio gozado pelo diretor em certo circuitinho. Sinal disso: em todas as suas sessões no Festival do Rio, Luz Silenciosa teve os ingressos esgotados com horas de antecedência. Isso não significa adesão completa. Os detratores de Lars Von Trier e do próprio Iñarritu, afinal, também estão sempre lá diante dos filmes.

Desde Japón, filme com o qual Reygadas se revelou em Cannes, envereando-se pela busca de um cinema único e singular, muitos reclamam. Pode-se acusá-lo de ser um fetichista do plano longo, de buscar no mistério de algumas imagens uma forma fácil de ampliar sua marca artística, de se interessar quase somente pela encenação, sem o mesmo interesse pelos seres dentro do quadro, vistos quase sempre como sintomas de uma enfermidade superior, abstrata, espiritual, nos levando a suspeitar pelo que o interesse do diretor é pelo não-visível. No entanto, as sessões, nos festivais, lotam. Reygadas conseguiu, também graças a Cannes, virar uma grife. Não importa mais se seu cinema é amado e odiado. Ele se tornou parte do buffet principal no self-service do circuito descolado.

Setembro de 2007


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