in loco - cobertura dos festivais
Tabu, de Miguel Gomes (Portugal/Alemanha/Brasil/França, 2012)
por Filipe Furtado

Aurora

Tabu contém uma das grandes sequencias de abertura do cinema recente: o próprio cineasta Miguel Gomes narra a anedota sobre um explorador europeu na África que, após perder a esposa, desaparece na floresta, é consumido por um crocodilo e numa antropofagia dos sentimentos se transmuta nele para a partir dali olhar. Há algo de sedutor nas imagens com as quais Miguel Gomes conta sua pequena história (versão em miniatura de muito do que virá a seguir), na maneira como Tabu encontra o equilíbrio entre o sentimento de descoberta ali contido e um profundo lamento romântico presente em seu espírito. Tabu é uma meditação sobre nostalgia e, como todos os grandes filmes sobre a História, é uma obra sobre o hoje.

Diante de Tabu, difícil não pensar na introdução do “A Era dos Extremos”, de Eric Hobsbawn, e sua afirmativa, já absolutamente datada no dia da publicação do livro, de que o século XX mergulhou num extremo de barbarismo sem igual na história da humanidade. É uma afirmação que se revelava datada não pela experiência das duas guerras mundiais que as informa, mas porque trai, por parte do grande historiador inglês, seu inevitável eurocentrismo, afinal o que exatamente torna o barbarismo das duas guerras da primeira metade do século mais intenso do que o de todas as guerras coloniais dos séculos anteriores que ajudaram a sustentar os mesmos impérios europeus que ruíram no pós-II Guerra? Tabu é essencialmente um filme sobre a impossibilidade hoje deste olhar eurocêntrico. Não é por acidente que seu casal de protagonistas, Aurora e Gian Luca, pertençam à mesma geração do historiador inglês, a última para o qual este olhar ainda chegava de forma natural (e não efeito dos delírios nostálgicos de setores da extrema direita do continente), para qual o paraíso europeu ainda era algo com o qual se podia sonhar.

O nome Tabu inevitavelmente traz associações claras à própria experiência de F.W. Murnau com sua fita romântica colonial, mas é bom saber que originalmente Miguel Gomes pretendia dar a Tabu o nome de sua protagonista Aurora (a opção final foi decorrência de Cristi Puiu retomar o nome Aurora primeiro), de conotação igualmente próxima ao cineasta alemão, mas que pressupõe outra aventura romântica e outra forma de deslocamento para a colônia – não para a obscura Polinésia, mas a desenvolvida America e com ela uma mudança radical nas relações de poder entre o cineasta e o mundo que desvenda.

O cinema é absolutamente central a tudo que torna Tabu o filme que ele é. Poucas vezes nos encontramos diante de um filme no qual a cinefilia informa tão diretamente seus méritos. É só através do cinema que este olhar pode ser recuperado e devidamente lamentado por uma última vez. Todo o filme se constrói sobre a arte do filtro narrativo, e se há algo espantoso no trabalho de Miguel Gomes aqui é justamente a maneira como ele pega o que poderia facilmente ser um empecilho e usa-o para amplificar a força do seu filme. Tabu é um filme sobre projeções (as de Pilar, das duas Auroras, de Santa, etc.) na qual o cinema assume o seu grande papel de mediador da história. Somente esta arte tão central ao século XX pode dar conta deste funeral, pode permitir que este olhar se projetasse uma última vez. Tabu encontra o poder do melodrama por meio de todas as técnicas de distanciamento possíveis para a narrativa cinematográfica. Nisto, Miguel Gomes não deixa de retomar o caminho de Murnau, que alcançava similares resultados lançando mão de todo o peso do maquinário hollywoodiano.

Aqui, se está sempre com as emoções devidamente afloradas. Não à toa, todos os personagens se põem a chorar o tempo todo. Ninguém dissimula no mundo de Tabu; a irritação de Aurora com Santa e vice-versa, a paixão do pintor por Pilar, a irritação dela ao saber que não receberá sua turista romena, o amor entre Aurora e Gian Luca e a reprovação de seu amigo Mário... tudo em Tabu, mesmo o que permanece não dito, é sempre claro e direto, se resolve através de gestos e ações. A certa altura, Pilar vai ao cinema com seu amigo pintor e Gomes a filma emocionada, a ouvir uma versão em castelhano para “Be My Baby” das Ronettes – mesma versão que veremos a banda de Mário e Gian Luca tocar na segunda metade do filme. Podemos dizer que Pilar já vira o “Paraíso” de Tabu, mas é melhor dizer que o cinema a preparou para experienciar o “Paraíso” de Tabu.

Muito se falou sobre como a segunda metade do filme retomar preceitos do cinema mudo, mas nem tanto sobre os métodos e razões de Gomes. O “Paraíso” de Tabu é o relato de Gian Luca, mas suas imagens não pertencem a ele, e sim ao imaginário de Pilar que traduz aquela história de amor trágico em cinema, a única linguagem capaz de dar-lhe um corpo, permitir a Pilar (e o espectador) ter a experiência sensorial do romance secreto de Aurora. Após alguns minutos da segunda metade do filme, a sua estrutura bipartida fica clara; precisamos afinal conhecer Pilar, travar uma intimidade com ela, para que Gomes possa se lançar a recriar seu romance africano por meio do olhar desta mulher, para quem a velha colônia será sempre muito mais um mito e uma ideia, reimaginá-la como terreno da aventura do europeu; a África de Tabu, à parte sua última virada histórica introduzida por Gian Luca, é um espaço curiosamente desprovido de africanos, e é parte da grandeza do filme que ele tenha plena consciência de que ele não é sobre a África, mas sobre europeus, para europeus.

Poucas vezes o cinema atingiu de tal maneira este propósito de se filmar um olhar, o que torna natural que o “Paraíso Perdido” de possa parecer uma simples introdução de interesse menor diante do triunfo que se revela a sua segunda metade, mas isto não seria mais distante da verdade.  Tabu é um filme do tempo presente; mesmo no seu longo retorno ao Monte Tabu, ainda estamos sempre com Pilar, Santa e Gian Luca sentados numa selva kitsch (é só assim, meio empalhado, que o imaginário colonial pode retomar a Portugal) a compartilhar deste paraíso. O “Paraíso Perdido” é muito mais seco do que as imagens posteriores, mas é realizado com a mesma atenção e graça (haverá até um falso crocodilo para acompanhar a posterior falsa floresta – a invenção ainda chega até Portugal só que pela segunda mão). Pilar se revelará tão testemunha na primeira metade quanto ela será da segunda; não à toa, vai ao cinema –  seu lugar é sempre olhar.

Há grande precisão na maneira com que Gomes registra o Portugal de Pilar; se o Paraíso é um museu do colonialismo, a Europa de Tabu se revela ela toda um grande museu, protagonista expulsa do centro a acompanhar com interesse suas últimas pequenas histórias. Haverá ali outro elemento de estorvo constante: a presença de Santa, a empregada, cuja relação amargurada de co-dependência com Aurora Gomes delimita com grande cuidado. “Ela está a tramar algo contra mim”, a velha senhora diante do seu último suspiro insiste à amiga Pilar, traindo todo o seu desejo por um retorno para outro tempo.  A presença sempre forte de Isabel Cardoso encerra o fantasma que o imigrante africano traz consigo para dentro desta Europa. O “Paraiso Perdido” de Tabu é um espaço assombrado pela saudade, tomado pelo desejo constante de retomar um tempo em que a diferença entre o centro e a periferia era clara (o filme começa com Pilar a levar um drible da viajante romena, impensável em outros tempos). Ao grande museu europeu de Tabu, cabe o papel de ir ao cinema e chorar, seja por si, seja pelas historias que se foram e aquelas que se sonha possível retomar.

No filme, todos perdem: os amantes, a Europa, a África. Mesmo os vencedores da história terminam ali somente a revivê-la, saudosos por um novo recomeço. Resta o cinema, esta arte tão preparada para a função de testemunhar. Miguel Gomes capta as trocas de olhares, os sorrisos furtivos, os longos silêncios, os momentos de repouso do casal Aurora e Gian Luca, a paisagem de Moçambique em que a ação foi filmada (filmada, mas onde ela não se passa; o Monte Tabu não é, nem jamais poderá ser, um espaço físico), o crocodilo sempre ali a observá-los. Tabu existe suspenso entre o cinema sonoro e mudo, tanto quanto o filme existe suspenso na memória – seja a dos amantes, seja a de Portugal. Restam-lhe sempre o olhar e este desejo constante de recomeçar.

Como Aurora bem lembra Gian Luca numa das cartas que eles trocam, a imagem que ele mantém dela esta distante da realidade. Assim como a alma do caçador se transmuta no crocodilo no prólogo, a Aurora a receber a morte da primeira metade se torna esta outra Aurora, viva e com um sorriso sedutor constante, uma projeção constante (tanto Gian Luca quanto de Pilar) de uma vitalidade que só pode existir em sonho. Tabu se move em direção a devolver a voz para Aurora – boa parte do último ato do filme é dominado por cartas e a presença de Ana Moreira, cada vez menos resignada a ser só uma projeção de histórias alheias. O filme caminha também para reconciliar o delírio romântico do colonizador com a história num só movimento, um ato que sirva para unir ambos no mesmo desejo nostálgico. A centralidade da Europa se dissipa, Portugal começa a caminhar para o terceiro mundo... sobra este olhar retrospectivo, este retorno impossível e o testemunho do crocodilo.

Outubro de 2012

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