in loco - cobertura dos festivais
Alga Doce (Tatarak),
de Andrzej Wajda
(Polônia, 2009)
por Eduardo Valente

Rejuvenescendo pela morte

Seria um caminho fácil elogiar Doce Perfume nos atendo a uma descrição do seu processo e a questões que, em última instância, independeriam da existência do próprio filme para serem discutidas. Afinal não é pouca coisa falar de um filme que, em pleno processo para ser feito, lidando com uma personagem que encontra a morte de diferentes maneiras, é interrompido quando a atriz principal precisa enfrentar ela mesma o câncer que em poucos meses consome e leva o seu marido (ele mesmo um colaborador assíduo de Wajda, como diretor de fotografia). Ambos então, filme e atriz, tornam o seu luto e sofrimento matéria-prima do próprio filme, num trabalho conjunto de extremo desvelamento, que certamente poderia ser “questão” sem necessariamente ser cinema de qualidade.

Mas o fato é que, correndo o risco de psicanálise rasa a posteriori, o trauma advindo destes acontecimentos parece ter rejuvenescido o desejo de cinema de Andrzej Wajda, que há pelo menos dez ou quinze anos vinha realizando filmes que trabalhavam numa zona de conforto que, embora possa ser bastante coerente com um cineasta ganhador de Oscar honorário pela carreira (algo que sempre soa a finalização, como se a carreira do diretor já tivesse dado o que precisava), não tornava mais o seu nome exatamente decisivo nem instigante no cinema contemporâneo. Em Doce Perfume, porém, Wajda surge em cena de novo (no caso, a expressão é literal), algo notável menos pela suposta complexidade de registros que o filme cria (que no fundo de complexo só tem as implicações, mas nada na forma em si) e muito mais pela maneira como corre riscos dentro de cada um destes registros. Há pelo menos três níveis narrativos distintos trabalhando no filme: o de uma atriz que monologa num quarto de hotel sobre a perda do seu marido pelo câncer; o da narrativa ficcional baseada no conto que era o projeto original de Wajda; e o curto-circuito entre os dois, quando a filmagem da parte ficcional se desvenda como tal, colocando em cena a atriz, a equipe, o diretor, etc. Atravessando todos os três, a morte como presença firme e indelével na vida.

“A vida vira morte tão rápido”, diz um personagem num momento, e é esta sensação que Wajda parece querer se dedicar a filmar com extrema precisão – algo particularmente emocionante no trabalho de um cineasta de mais de 80 anos de idade, que parece estar falando de um tema muito caro a si pessoalmente. Nesse sentido, a confluência entre os acontecimentos extra-roteiro e este são absolutamente impressionantes, já que o conto que dá origem a Doce Perfume é infestado pela morte, que está no passado, no presente e no futuro da personagem principal, que paira pela tela ainda assombrada pela perda de seus dois filhos na II Guerra, enquanto tenta encontrar alguma maneira de se reconectar com a memória deles (que é também a memória de toda a Polônia) através de algo que a faça se sentir viva. Ela faz isso sem saber que tem poucos meses de vida ela mesma, pois sofre de um câncer incurável que o seu marido médico não revela.

Wajda filma este conto lúgubre conseguindo um tom fascinante entre o do cinema clássico e um artificialismo assumido como tal, que nos lembra vários dos seus grandes momentos anteriores. Existe ali uma solenidade que nada tem de banal, pois incorpora de alguma maneira este olhar distanciado que a personagem parece jogar sobre o mundo, tentando encontrar algum espaço para o contato renovado com o que está à sua volta. Há uma quantidade grande de cenas onde o cineasta atinge um registro preciso para esta subjetividade, como no baile à beira do rio, na ida da personagem para o sexo com o seu marido, ou principalmente no momento que antecede o seu completo desfazer, de novo à beira do rio (e a imagem do rio é essencial para o filme, muito além da sua participação central na trama). Doce Perfume, se fosse apenas a filmagem desta história, seria um tremendo filme, e no fundo é isso que garante a sua força: a sobreposição de narrativas entra como um dado complicador e significativo, mas o material original se sustenta por si mesmo.

Claro que é impossível falar disso tudo e elogiar o filme sem passar por sua intérprete principal, Krystyna Janda. Rosto talvez pouco conhecido para o espectador brasileiro, a atriz possui uma carreira enorme na Polônia, inclusive com o próprio Wajda (Homem de Mármore, Sem Anestesia, etc), e é dona de uma das mais impressionantes interpretações femininas da história, no fortíssimo O Interrogatório. Janda aqui em Doce Perfume ultrapassa os limites de um trabalho de atriz, não só por incorporar sua história pessoal (e foi ela quem escreveu o monólogo que lê no quarto de hotel), mas principalmente pelo fato de que é no seu corpo e no seu rosto que se dá o sentido real do filme. Isso porque acompanhá-la em cena é também ver mais de 30 anos de história de cinema, e a maneira como sua personagem tenta enfrentar a morte não deixa de ser a luta do próprio filme e de todos os humanos contra o esquecimento e a arbitrariedade da existência. A verdade é que, em bem mais de um sentido, Doce Perfume nunca poderia existir com uma outra atriz à frente.

Setembro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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