edição especial curtas brasileiros 2009
Mais que plano único
por Cléber Eduardo

Fantasmas, de André Novais Oliveira (Minas Gerais, 2010)
Tauri, de Marcio Miranda Perez (São Paulo, 2009)

O plano único conecta Tauri e Fantasmas. No primeiro, ele é fixo: vemos uma sucessão de movimentos de corpos em diferentes ações, em um pedaço de areia em frente ao mar, com um menino sentado e um adulto dormindo ao lado. Mas a câmera fica imóvel, e só ouvimos o som das ondas. No segundo (foto ao lado), o plano começa fixo, já com uma conversa em andamento entre dois amigos fora de quadro, sobre um encadeamento de assuntos sem muita importância, e permanece sem piscar, sem olhar para o lado – mas, em um dado momento, a câmera se movimenta bruscamente. Nos dois casos, existem “observadores de quase nada” (uma criança que vemos, rapazes fora de quadro), que olham para uma praia e para um posto de gasolina sem ter nada de relevante para ver. Porque ali estão a observar enquanto brincam ou conversam, eles testemunham acontecimentos maiores, algo que explode em um e (descobriremos) é aguardado no outro. Nos dois casos, o senso de absurdo predomina. Porque qualquer lógica explicativa não está na imagem em si, mas em forças invisíveis pressionando de fora para dentro do plano, até se tornarem visíveis para nós.

Não há intenção de justapor os dois curtas apenas porque empregam o plano fixo, mas sim lidar com as particularidades a partir desse ponto de contato inicial de ambos. A motivação dessa aproximação, porém, é anterior a esse elo (o plano fixo). Tauri e Fantasmas entram nessa pauta pelo poder de gerarem uma experiência intensa no primeiro contato e de estimular uma reflexão posterior quando revistos. Não são seus planos fixos aquilo que os une nesse texto, como se o plano fixo em si fosse uma questão, mas os efeitos potentes obtidos a partir dessa escolha. A experiência narrada não é inibida pelo conceito norteador.

Comecemos por Tauri. A escolha de um ponto rígido e irreversível, que não olha para os lados ou para qualquer outro ponto, não visa uma imagem estática e fria. Atende a um princípio, isso sim, de limitação do olhar. E de concentração em dispersão pelo quadro. Concentração porque, sem os cortes, o olhar fica solto. Tem de passear pela tela. Não é induzido. Escolhe o que ver. Dispersão porque, nessa escolha, não há um centro. É preciso expandir o ponto a partir do qual se olha e mantê-lo em mobilidade. A câmera fixa estimula, portanto, o movimento do olhar. Lida com o movimento centrífugo e centrípeto – às vezes ao mesmo tempo, dependendo das opções de direção (para onde dirigir os corpos). Corpos entram e saem do quadro em Tauri, explicitando a limitação do ponto de vista, assim como evidenciando uma extensão invisível. O menino sentado na areia está mais à direita do plano. É um centro torto em uma superfície de movimentos centrífugos. Como não nos direcionam o olhar, podemos nos centrar nas ações mínimas da criança. Ou acompanhar quem passa por ali.

Se fosse apenas isso, poderia ser homenagem a Lumière, ou mesmo aos impressionistas, Monet à frente, com seus transbordamentos do plano. Poderia ser ainda mais uma experiência de relação com “momentos quaisquer” em um espaço pouco dado a alterações.  Essas seriam as saídas fáceis para um curta de plano único e fixo. Retomar uma certa captura da duração e de um recorte de espaço. Tauri, porém, é dramático. Existe nele um senso de desenvolvimento nas ações. Existem sentidos a serem obtidos pela soma dos acontecimentos e da reação dos corpos. Não se trata de olhar paisagem ou exibir um bom quadro.

O eixo dramático de Tauri é gerado de fora para dentro, não de dentro para fora (como é em algumas cenas de Michael Haneke), porque seu clímax acontece no interior do quadro. Se os agressores e os agredidos invadem a calmaria do quadro, de fora para dentro, é lá dentro que há a agressão. É como se o trem dos Lumière viesse em sentido contrário, mas com a câmera mantida onde estava, sem estar em quadro antes de passar pela câmera, e atropelasse alguém na estação, antes de dar uma ré e sair de cena. Um corpo, vindo da esquerda, é espancado por outros. Fica estirado. Torna-se, desde o início do espancamento, o novo centro do quadro. Temos dois centros desde então. O corpo imóvel e o menino atento. Mas o desfecho ainda reivindicará o movimento centrífugo. Um rapaz, já visto antes em movimento contrário, é visto pela segunda vez voltando do lugar para onde ia no começo e, ao olhar o corpo no chão, fica parado e logo vai embora como se nada tivesse a ver com aquele corpo. O rapaz volta alguns tantos segundos depois. Traz ajuda para carregar o corpo. O menino se levanta. O adulto continua a dormir ao seu lado.

Esse pedaço de praia, e a percepção desses corpos mostrados, sofreram intensa modificação nesse plano sem cortes e filmado em tempo real. A mobilidade na imagem é física, de pessoas que atravessam o quadro, que lá permanecem ou sempre estiveram, alterando-o permanentemente. Opta-se por nos dar a ver um recorte muito estreito do espaço (a praia, um menino sentado, um adulto ao seu lado dormindo, uma ou outra passando na horizontal do plano), mas essa é menos uma composição plástica e geométrica, como a princípio pode parecer, e mais uma estratégia de se sentir no quadro as forças de suas margens. É uma opção tão dramática quanto estética. A briga sem uma razão evidente salienta o absurdo dessa situação de violência física. Os momentos no qual o rapaz olha para o corpo sem nada fazer e sua saída do plano para a invisibilidade também cria um desconforto em relação à passividade diante de uma evidência de violência. Entre a saída do rapaz e seu retorno com outra pessoa, para agir e não compactuar, há um senso de reviravolta e transformação interna, que atinge seu clímax de movimentos com o menino se levantando. Ele não pode ficar mais sentado olhando. Levantar-se tem uma força incrível, nesse sentido.

Se as alterações cênicas são somente visuais em Tauri, concentradas nas ações dos corpos, elas são quase exclusivamente verbais em Fantasmas. Não por conceito ou por capricho, apenas porque se queria filmar um diálogo fora de quadro, apenas para parecer sacada esperta. Há uma lógica interna, absurda é verdade, que determina o quadro. Não há nesse quadro nada de belo como em Tauri, nada de visualmente atraente, nenhuma possibilidade de transcendência pelo imagético, de sentidos ocultos por conta da permanência da imagem. Desde o começo, vemos um posto de gasolina. Dois amigos conversaram fora de quadro sobre coisas corriqueiras. A câmera está, provavelmente, no quintal de um sobrado, andar superior. O bate papo troca de eixo, mas nenhum deles é forte. Fala-se de um futebol ali perto, de uma pequena dívida. Não há nenhuma razão aparente para estarmos vendo um posto de gasolina enquanto eles conversam fora da imagem. Há, porém, sintonia. Tanto a imagem quanto as conversas igualam-se na banalidade e têm um sendo de corriqueiro pregnante. Papos quaisquer, imagens quaisquer.

Quando essa aparente sacadinha começa a se dissolver, mostrando os sinais de seu esgotamento como ponto de partida e solicitando um novo encaminhamento para não se reduzir a uma piadinha, um dos rapazes descobre a câmera ligada. É o desnudamento do aparato de registro de imagens que nos coloca em contato com uma lógica absurda para vermos um posto de gasolina durante todo o tempo da conversa. A explicação da presença da câmera ligada não faz sentido para o amigo, que fica assustado com a presença da máquina, e talvez só faça sentido mesmo para quem teve a idéia de utilizá-la. Essa câmera funciona como uma espécie de câmera de vigilância para seu dono, na verdade uma câmera de confirmação de suspeita, sem, no entanto, ter nada a ver com proteção do posto ou da casa do rapaz. O rapaz quer apenas uma prova de que sua ex-namorada de meses passa por ali. Uma vizinha parece tê-la visto. Ele quer uma confirmação. Por que? Para que? Não importam as respostas ou bom senso nesse caso. Ele apenas precisa ver essa imagem. Para depois esquecê-la.

Se comparado a Tauri, Fantasmas é piada. Há um enorme senso de ironia em sua proposição e ainda mais em seu desfecho. Sua força está em incorporar um suposto clichê de um “curta de arte” como parte dos procedimentos de um personagem para viabilizar o nonsense de capturar a imagem de uma ex-namorada. Somos submetidos a uma mesma imagem de posto de gasolina porque somos submetidos à patrulha dele ali. Não estamos dentro de seu olhar, porque, na câmera, não existe um olhar para enquadrar. É uma câmera sem olho. Somos submetidos, na verdade, a sua emoção, obsessão, desconfiança e curiosidade, que são expressas por essa imagem (de procura, de espera). A câmera de vigilância, portanto, vira câmera de afeto.

Como em Tauri, a imagem vista, intermediada pela câmera (e pelo zoom, nesse caso), é mobilizadora. Potencialmente, pelo menos. Nos dois casos, o mundo muda por conta do que é visto pelos personagens. Em Fantasmas, porém, para esse mundo mudar ele precisa de uma câmera. Não de uma fantasia do cinema, mas de um índice de verdade, do conforto de saber que sua ex-namorada está por perto, não importa por qual razão. Sabendo disso, tendo a prova, pode-se tocar o bonde. Vemos um lugar de passagem, rua-posto, mas a câmera permanece. Ele precisa dela para poder olhar e poder acreditar na visão. Ao sair da imobilidade para a mobilidade, ao mudar o quadro e dar o zoom, o rapaz da câmera age com o menino ao se levantar em Tauri.

Janeiro de 2010

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