O Tempo que Resta (Le Temps qui Reste),
de François Ozon (França, 2005)
por Francis Vogner dos Reis

Plano e contra-plano com princípio

François Ozon possui uma carreira regular. Seus filmes fracos nunca foram muito ruins, e mesmo os bons nunca chegaram ter grandes achados estéticos. Como um artista aparentemente “morno” ele não despertava entusiasmo nem repúdio. Mas, depois de Oito Mulheres e Swiming Pool (dois dos seus piores filmes que requentavam algumas prerrogativas de estilo dos anteriores), parecia que o que viesse era lucro. Eis que o cineasta reaparece com Amor em Cinco Tempos (de 2004, mas que teve sua estréia no Brasil este ano) e este O Tempo que Resta, seus melhores filmes. Se não chegam a ser grandes trabalhos, neles Ozon faz o bastante pra chamar novamente atenção para sua obra.

O fotógrafo Romain (Melvil Poupaud) passa mal em uma sessão de fotos de moda e dias depois no hospital o médico lhe revela que tem pouco tempo de vida caso não aceite fazer quimioterapia e radioterapia. O Tempo que Resta é um drama em torno de um doente terminal que não quer dizer a ninguém que tem pouco tempo de vida, e mesmo assim é obrigado a confrontar seus familiares, amigos e namorado por uma possível última vez. Mas a verdadeira questão do filme, Ozon parece desenvolver aos poucos: o que existe entre um plano e um contraplano? É certamente a extensão dessa problemática que é repercutida com destreza em O Tempo que Resta.

O filme é uma sucessão de encontros, por isso, o recurso do plano/contraplano ultrapassa o uso acessório que muitos filmes adotam. Esses encontros demonstram uma grande capacidade de fazer do plano/contraplano uma construção, muito mais do que um mero diálogo. O modo como Ozon constrói o diálogo de Romain com seu pai em uma seqüência, e com a avó em outra, é admirável. O plano/contraplano com o pai no carro é o momento em que ele se mostra realmente disposto em ignorar a doença perante seu núcleo familiar. Pede para o pai parar o carro, compra cocaína e tem sua última conversa com ele. Ali aparecem todos os elementos que definem o relacionamento dos dois. Não é um diálogo cordial, tampouco baseado no ressentimento. Os sentimentos aparecem, inclusive o pior de cada um – algo semelhante aos diálogos dos melhores filmes de Bergman, para quem também o plano e contraplano era muito mais do que uma questão formal, era um dos mais caros princípios cinematográfico. As pausas, o tempo de corte, as poucas, mas certeiras falas de ambos os lados. A sinceridade de Romain machuca porque não tem pena do seu interlocutor, seja o pai, ou seja a avó para quem ele diz “somos iguais” ou “te falo isso porque você também está perto de morrer”.

Romain recusa os tratamentos e também prefere omitir a doença. Ele rejeita qualquer possibilidade de ser objeto de compaixão dos familiares e do namorado, como se assim, deixasse de afirmar quem é e tudo que realizou na sua vida. A postura de Romain assusta no princípio, porque parece mais um ressentimento atroz, que o distancia das pessoas. Não deixa de ser uma arrogância, mas arrogância dos resistentes que rejeita ser transformado em objeto de pena. Ele evita transformar “o tempo que resta” em um réquiem conciliador, em que supostamente as diferenças (com a família, namorado) seriam ignoradas em prol de uma morte tranquila. A coragem de Romain é, então, afirmar suas vontades, frustrações e diferenças (ampliando-as) nesse momento. Negar isso tudo, seria terminar a vida de modo cínico. Por isso na casa dos pais, no encontro com o namorado, o personagem expõe todas as diferenças e segue. Seus diálogos com seus entes serão absolutamente francos e diretos, apesar de não tocar no assunto da doença – com exceção de sua avó, interpretada por Jeanne Moreau. O protagonista também tira fotos das pessoas, menos com o objetivo prático de guardar as imagens (já que isso não faria sentido), e mais como um ritual de emitir uma última impressão (ou sentimento) sobre a pessoa amada.

As imagens-memória da infância de Romain, e sua opção por engravidar uma mulher que lhe pede isso, compõem uma segunda camada de O Tempo que Resta, que nem sempre dá certo. Destoa do resto do material porque parece aspirar a uma nostalgia e uma necessidade de permanência que não se integra bem à construção mais interessante do personagem operada por Ozon. Um personagem aguerrido ou arrependido? Ele chega a justapor essas duas possibilidades, não chegando exatamente  a uma conclusão. Ironicamente, Bergman também ressoa ai, mas justamente no que o autor sueco tem de menos interessante.


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