Tempos de Paz, de Daniel Filho (Brasil, 2009)
por Francis Vogner dos Reis

Cinema de operário

Se Tempos de Paz é um dos dois trabalhos mais interessantes de Daniel Filho (o outro é Se Eu Fosse Você 2) é porque o filme existe sobretudo em função de um trabalho meticuloso com os atores. Só que aqui a meticulosidade é a discrição e o desaparecimento do método de trabalho com esses atores. Quando o diretor diz que sua função foi “não atrapalhar os atores”, não o faz em tom de piada ou falsa modéstia. Daniel Filho filmou Tony Ramos e Dan Stulbach sem querer reinventá-los com a câmera. O resultado não é perfeito ou arrebatador (longe disso), mas tem uma entrega, até certo ponto, formidável. Aqui, Daniel Filho responde justamente ao seu discurso de operário do cinema: se colocar a serviço do seu filme. É uma postura antiartística do diretor, mesmo sendo uma história que fala sobre a nobreza do artístico, a redenção pela beleza, etc. Coisa saudável em um momento (e em um festival) em que vimos uma penca de diretores que são mais artísticos do que realmente artistas. Mas, apesar do valor desse miolo-coração de Tempos de Paz, há acidentes que derivam justamente dessa postura de Daniel Filho que é quase uma partilha pela “responsabilidade sobre o filme”. Essa “partilha”, dividida entre diretor, roteirista e atores, como não poderia deixar de ser, desequilibra um tanto as partes.

A parte em que o personagem de Daniel Filho procura seu torturador e as cenas com a irmã deste último são o entorno da relação central, entre o imigrante e o agente da polícia política, filmadas com um conciliado desleixo (uma não-decupagem e uma montagem que instaura o caos), existem só para dar sustentação a um filme que precisa ter mais de 80 minutos, pois a peça conta menos de uma hora e só possui o diálogo entre os dois protagonistas. Esse acréscimo de personagens e situações paralelas só dispersa a energia que no filme é concentrada nos personagens de Ramos e Stulbach. Já no caso dos atores, também há uma fragilidade, mas esta o diretor consegue administrar: se Tony Ramos é grande em seu papel, o mesmo não pode se dizer de Dan Stulbalch, que está muito bem, mas a certa altura (e com a liberdade que dispunha) passa um pouco do tom, quase se descolando do filme. Se Daniel Filho se deixasse levar um pouquinho que fosse por isso, faria do filme um veículo para Stulbalch. Mas não: lhe interessa o embate entre os dois personagens (entre duas histórias, dois mundos, dois valores, todos contrastantes) e dessa tensão sai o que o que o filme tem de mais bonito. O diálogo-interrogatório entre o imigrante polonês e o agente da polícia política do Estado Novo é um material fascinante.

Mesmo que não se conheça a peça original, o texto mostra que ele tem uma natureza e um lugar: o palco. Dizer isso não diminui em nada o filme de Daniel Filho, já que ele tem uma origem teatral e não tenta escamoteá-la para declarar uma existência “eminentemente cinematográfica” – erro este em que incorrem filmes menos seguros de seu poder de fogo. Uma transição de uma coisa pra outra é sempre traumática, sempre trai o original, sempre lhe tira o que lhe parece belo e interessante para dimensionar uma beleza que o teatro não é capaz de criar, não porque não possa fazer algo à altura, mas porque seu poder e fascínio são de outra ordem. Não existe a presença (teatro), existe um meio (o cinema); não existe uma duração real (o teatro), mas a criação absolutamente limitada do tempo (o cinema). O filme não discerne direito uma coisa da outra. É um problema, mas por causa de seu tom fabular pode até ser banal, não chegando a ser fatal.

Julho de 2009

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